Como desemorcilhar morcilha

Como dizia o enchedor de ampulheta diante da duna do dia: nem tudo é interessante. Não, não é. Mas pode-se falar de coisas desinteressantes com palavras inolvidáveis, que soem inesquecíveis. Ou por abordagens interessantes, ou de formas in-te-res-san-tes. Truque eficaz é repetir o tema central após dois pontos: o tema central ganha em expectativa. Também estacar o assunto.

Devagar. Vezes várias. Paulatinamente. De modo que a fluência afaste o desinteresse de quem lê. Se não surte efeito, sabe o que se faz nessa hora? Uma pergunta. É interessantíssimo como amplia o grau de atenção, sobretudo se precedido de superlativo e sucedido de um ponto de exclamação! Interessantemente aplicados, até advérbios no meio de uma frase iniciada com um deles, funcionam.

Se estiver faltando impacto, use a palavra impacto, mas com impacto. Assim se vai construindo, oração após oração, um bloco que começou do nada, criou aqui e ali zonas de fixação e mesmo sem climax mantém o clima. Pois os interessados querem porque querem avançar, atingir o ponto final, eles sabem que enquanto a ele não chegam nem tudo está perdido, raciocinam. A essa altura, em poucas dezenas de linhas, algumas centenas de palavras, mais ou menos um milhar de letras, o leitor reconhece no autor um interesseiro. Ele escreve para tentar cativar. Pretende seduzir pela indução. Tecla frases curtas.

Vocábulos soltos. Livres. Simples. Plurais. Os argumentos finais se aproximam. O texto ameaça parar, porém, após três virgulas, prossegue. Novo trecho, novo ânimo, novo impulso; o poder de um único e repetitivo adjetivo! O foco de interesse, que não definhou porque não se definiu, reaparece (sugerido entre parênteses) para insinuar uma vitória textual. Interessadíssimo, o leitor pressente. A conclusão vem aí. Afinal, se a ausência de assunto já preencheu uma lacuna inexistente, nada mais há a dizer. Como diria o enchedor de ampulheta: analisada de grão em grão, até a duna coaduna. Ponto final.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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