Ruy Castro – Folha de São Paulo
Dilermando, sempre rigoroso em relação a Euclides
O poeta e acadêmico Antonio Carlos Secchin, habituado a descobrir livros impossíveis e reincorporá-los à cultura brasileira, acaba de nos apresentar outra maravilha: um exemplar da terceira edição de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, de 1905 (o livro é de 1902), com anotações a lápis feitas por seu antigo proprietário. O importante é esse proprietário: Dilermando de Assis, o homem que matou Euclides em legítima defesa, no dia 15 de agosto de 1909.
“Os Sertões” já foi esmiuçado de todo jeito. Mas esse exemplar pode contribuir para uma discussão sobre a acuidade de Euclides como narrador de procedimentos militares. Segundo artigo de Secchin no “Globo”, Dilermando tenta ser neutro, mas discorda de Euclides na descrição de várias passagens da guerra de Canudos, eixo da obra. Tinha autoridade para isso —era militar, talvez tenente ao ler o livro, e nem a tragédia que os envolveu impediria sua brilhante carreira no Exército.
Livros ou manuscritos com anotações são leitura sempre fascinante. O exemplo clássico é o original de “The Waste Land”, o poema de T.S. Eliot brutalmente canetado em 1922 pelo próprio Eliot e por seu amigo e mentor Ezra Pound antes da publicação. O fac-símile do original rabiscado saiu em 1971 numa edição da inglesa Faber. Grande copidesque, Pound.
E muita gente daria tudo para folhear a Bíblia anotada por um de seus mais exigentes leitores: o compositor e poeta carioca Jayme Ovalle (1894-1955). Mas não se sabe o destino desse Evangelho segundo Ovalle.
Já uma hilariante aventura deve ser um mergulho na biblioteca de João do Rio, doada ao Real Gabinete Português de Leitura na sua morte, em 1921. Nas margens daqueles milhares de livros, estão as anotações em que ele dizia o que realmente pensava dos escritores cuja vaidade alisava nos cafés do Rio.