Sessão da meia-noite no Bacacheri

Lou Jean Poplin (Goldie Hawn) é uma mulher que ajuda o marido a escapar da prisão, para que juntos possam ir até Sugarland na intenção de recuperar o filho, que foi adotado por um casal local. A fuga de ambos provoca uma caçada policial sem precedentes na história do Texas. Direção de Steven Spielberg, 1974, The Sugarland Express, 1h 48m. Baseado em fatos ocorridos no Texas, em 1969.

A Louca Escapada – O jovem Steven.  Para alguns, o Rei Midas de Hollywood, o homem mais poderoso da indústria cinematográfica, um herdeiro dos grandes cineastas americanos do passado. Para outros, o responsável pela infantilização do cinema após a metade dos anos 1970, um eterno meninão que não consegue tratar de forma adulta temas sérios como o Holocausto ou a Segunda Guerra Mundial, um manipulador. Mesmo seus mais ferrenhos críticos, que não toleram o uso excessivo da música grandiosa de John Williams, a fotografia edulcorada e solar de Allen Daviau, Douglas Slocombe ou de Dean Cundey, e de determinadas sequências que parecem ter a nítida intenção de fazer o público chorar, é difícil negar o enorme talento de Spielberg para filmar, seu senso de espetáculo e sua habilidade de guiar o olhar e as emoções do espectador.

Por isso mesmo é curioso voltar ao primeiro de seus filmes (ao menos o primeiro feito para cinema) e observar o nascimento de um cineasta. Rever A Louca Escapada (The Sugarland Express, 1974) serve para isso. Se está longe dos grandes espetáculos que o diretor realizaria no futuro e, aos olhos do espectador que se acostumou com a marca Spielberg, o filme pareça tímido demais, ainda assim é um entretenimento digno e honesto.

Texas. Um mundão sem fim. No meio daquele nada, na confluência de várias estradas que se cruzam em sentidos variados, um ônibus se aproxima. Dele desce Lou Jean Poplin (Goldie Hawn). Ela caminha por um longo terreno arenoso. Carrega consigo algumas sacolas. Seu destino é um centro de reabilitação para presidiários, uma espécie de último estágio antes da concessão do alvará de soltura. Ela está lá para ver seu marido, Clovis Michael Poplin (William Atherton). O guarda da recepção não a reconhece. Lou Jean confirma a suspeita: aquela é a sua primeira visita à instituição. Sua aparição tem uma razão: o filho do casal foi levado pelas autoridades estatais, e agora ela pretende convencer Clovis a resgatá-lo dos seus novos pais adotivos, em Surgarland.

Mesmo faltando apenas quatro meses para conseguir sua liberdade, Clovis se rende ao poder de persuasão de Lou Jean (que poderia também ser chamado de chantagem emocional) e partem em direção a Sugarland. Por uma série de mal-entendidos, eles transformam o policial Maxwell Slide (Michael Sacks) em refém, o que faz com que as autoridades rodoviárias iniciem uma perseguição aos dois criminosos. No comando das ações, está o Capitão Harlin Tanner (Ben Johnson), que, receoso de colocar a vida de Slide em perigo, se limita a seguir Lou Jean e Colin pelas estradas do Texas. Não demora muito para que ambos tenham uma procissão de uns 200 carros no seu encalço.

Não é totalmente errado ver A Louca Escapada como o Loucuras de Verão (American Grafitti, 1973) de Steven Spielberg. Apenas um ano separou o lançamento dos dois filmes, o que permite a ilação de que as filmagens podem ter ocorrido mais ou menos simultaneamente. Naquela época, as carreiras de Spielberg e George Lucas ainda estavam começando e nada indicava que eles se tornariam – para o bem e para o mal – os responsáveis pelas profundas modificações introduzidas na Hollywood da segunda metade dos anos 1970.

Lucas acabara de estrear na direção com a ficção THX-1138 (Idem, 1971), uma fita experimental, bancada pelo seu amigo Francis Coppola, e que se inspirava nas obras do escritor George Orwell. O projeto era tão ousado que ninguém entendeu nada. Lucas foi obrigado a deslocar seus olhos do futuro para o passado e, a partir das lembranças da sua adolescência, construir um pequeno filme sobre um determinado grupo de amigos e a última noite antes de cada um deles assumir suas responsabilidades perante a vida adulta (um deles vai para a faculdade, outro se alista no exército e vai lutar nas fronteiras do Vietnã e assim por diante). Com uma trama quase inexistente, Loucuras de Verão se valeu do seu clima nostálgico e ameno, quase inofensivo, para cair no gosto do público, render rios de dinheiro e colocar George Lucas no mapa das novas revelações de cineastas que, ao lado de William Friedkin, Peter Bogdanovich, Bob Rafelson e o seu amigo Francis Coppola, começava a ditar as regras do jogo.

Contemporâneo de George Lucas, Spielberg vinha de alguns pequenos projetos para a televisão, quando chamou a atenção com Encurralado (Duel, 1971). Apesar de também ser concebida para a tela pequena, a produção mostrava um frescor, uma garra, uma autenticidade que já não se via no pesado cinema que os EUA faziam naquele fim dos anos 1960. A Universal gostou do que viu e resolveu dar sinal verde para aquele nerd de 26 anos tirar do papel uma antiga ideia sua, obviamente influenciada em Uma Rajada de Balas (Bonnie & Clyde, 1967), do casal de foragidos que parte pelas estradas do Texas em busca do filho perdido. Se A Louca Escapada não teve o mesmo sucesso de bilheteria que Loucuras de Verão, ao menos serviu para comprovar que Spielberg era um diretor no mínimo confiável.

Curiosamente, quando nada indicava que a carreira de Lucas e Spielberg sairia desse tom sereno, de aventuras ligeiras e comédias românticas, ambos embarcaram em projetos que mudariam para sempre a história de Hollywood. Apenas um ano depois de A Louca Escapada, Spielberg tirou do bolso do colete um assombro chamado Tubarão (Jaws, 1975), enquanto que quatro anos após Loucuras de Verão, Lucas fez um capa-espada futurista chamado Star Wars Episódio IV – Uma Nova Esperança (Star Wars Episode IV – A New Hope, 1977). Hollywood e o próprio cinema nunca mais seriam os mesmos.

Evidentemente A Louca Escapada é uma obra que não tem a mesma ambição dos filmes seguintes de Spielberg. Dito isso, é até injusto compará-lo com produções de maior escopo e com orçamentos infinitamente maiores. No entanto, do ponto de vista temático e estilístico, é possível antever algumas das marcas características – inclusive alguns defeitos – que o cineasta desenvolveria no decorrer dos anos.

Entre as más notícias, A Louca Escapada serve para comprovar que a comédia nunca foi o forte de Spielberg. Em seus filmes, a graça funciona apenas enquanto elemento secundário da trama. Veja-se os seguintes exemplos: o tiro que Indiana Jones desfere no árabe, recusando-se a entrar num duelo de espadas, em Os Caçadores da Arca Perdida (The Raiders of the Lost Ark, 1981); a bebedeira do extraterrestre em E.T. – O Extraterrestre (E.T. The Extra-terrestrial, 1982); as iguarias servidas no banquete em Indiana Jones e o Templo da Perdição (Indiana Jones and the Temple of Doom, 1984); as brigas entre pai e filho e o autógrafo de Hitler em Indiana Jones e a Última Cruzada (Indiana Jones and the Last Crusade, 1989); e as dificuldades de comunicação entre os personagens de Tom Hanks e Stanley Tucci em O Terminal (The Terminal, 2004). Todas estas sequências têm algo em comum: elas provocam o riso, mas as piadas não estão lá como um fim em si mesmo. Antes disso, a graça tem um objetivo quase que estratégico, seja ilustrar um propósito maior da cena ou acentuar a característica de algum personagem. Spielberg usa a comédia não para nos fazer rir, mas para nos manipular.

A coisa sai do prumo quando ele inverte a ordem dos fatores, e resolve fazer a graça pela graça. Nessas horas, Spielberg mostra seu lado negro da força como cineasta: mão pesada, falta de timing, tendência ao exagero, e narrativa inflada. Esses problemas podem ser detectados, por exemplo, em 1941 – Uma Guerra Muito Louca (1941, 1979) e Hook – A Volta do Capitão Gancho (Hook, 1991), cujos gigantismos colocam tudo a perder. Embora A Louca Escapada possa ser visto mais como um filme de aventura do que uma comédia propriamente dita, esses sintomas também estão presentes. Spielberg deveria pressentir que o riso da plateia não seria diretamente proporcional à quantidade de carros de polícia que vai no encalço dos protagonistas. No início, quando o comboio começa a tomar forma, a graça vem do absurdo da situação e a piada até que funciona. No entanto, à medida que a situação foge do controle, a novidade desaparece, e o cômico se transforma em algo próximo ao ridículo.

Com o distanciamento do tempo, é no mínimo curioso observar que, no mesmo ano que A Conversação (The Conversation, 1974) foi laureado com a Palma de Ouro em Cannes, A Louca Escapada recebeu o prêmio de melhor roteiro. Apesar disso, é possível perceber alguns óbvios problemas no trabalho da dupla Hal Barwood e Matthew Robbins. O principal deles é o desenvolvimento dos personagens. Mesmo tendo os protagonistas confinados dentro de um carro por quase todo o tempo de projeção, pouco ficamos sabendo deles. A não ser o motivo da fuga e de uma rápida menção aos pequenos delitos que os levaram à prisão, nada mais conhecemos sobre o passado de ambos. Talvez por essa falta de conexão com os personagens principais, é difícil para o público entender ou aceitar a comoção que eles causam entre os moradores das cidades que ficam no caminho do seu destino final. Ok, a coisa toda pode ser vista como o retrato de uma América que, desiludida com seus jovens morrendo no Vietnã, via nos renegados, nos iconoclastas e nos inconformados um modo de contestar o establishment. Mas, como personagens de cinema, o roteiro não torna Lou Jean e Michael carismáticos o suficiente a ponto de mover uma nação. Também não se aproveita as potencialidades dos conflitos entre os dois anti-heróis e o policial que é levado em resgate, nem mesmo o drama do capitão que se recusa a atirar no carro em fuga, que parece desenvolver uma relação paternal com os fugitivos. Por último, o final sério e melancólico, é abrupto e de certa forma incoerente com o tom ameno e quase despretensioso do restante do filme.

Mas nem tudo vai mal em A Louca Escapada. Talvez preso pelas limitações da televisão, Spielberg optou pela janela 2:35, o que lhe permitiu aproveitar todo o espaço cênico e criar belos enquadramentos. O mais famoso deles é uma rápida cena em que Spielberg divide a tela em duas metades horizontais, colocando na parte de cima os olhos do personagem de Ben Johnson refletidos no espelho retrovisor, e na parte de baixo, Goldie Hawn, no banco de trás do carro da frente, olhando o seu perseguidor. Em outra passagem, quando os fugitivos param num drive-in à beira da estrada para passar a noite, Spielberg contrapõe no mesmo quadro o semblante fechado de William Atherton e, refletido no vidro do carro, o personagem do coiote, no famoso desenho animado.

Outra marca do diretor que já está presente em A Louca Escapada é o aproveitamento do plano. Essa característica, que se consolidou ao longo da sua carreira, aparece quando Spielberg opta por decupar uma sequência em um único travelling ou com o mínimo de planos possíveis, os quais normalmente contém mais de uma informação a ser compreendida para o público. É possível verificar esse traço, por exemplo, na cena do desembarque dos aliados na Praia da Normandia, em O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998); na apresentação da feira de sucatas de robôs, em A.I. – Inteligência Artificial (A.I. – Artificial Intelligence, 2001) ; e na fuga do personagem de Tom Cruise e os filhos, no primeiro ataque alienígena, em Guerra dos Mundos (War of the Worlds, 2005). Vemos tal artifício em alguns momentos de A Louca Escapada. Em um deles, logo no início, Spielberg acompanha lateralmente a entrada de Goldie Hawn na instituição prisional, ao mesmo tempo que nos apresenta a geografia do local e os seus principais ocupantes. Mais à frente, o diretor repete o movimento lateral de câmera, e coloca no primeiro plano uma conversa do capitão e seu subordinado sobre o passado criminoso dos protagonistas, enquanto que no segundo, um banheiro químico é posicionado para a personagem de Goldie Hawn. A montagem de A Louca Escapada é assinada por Edward M. Abroms e Verna Fields (que voltaria a trabalhar com Spielberg em Tubarão, no ano seguinte). A partir de Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters of the Third Kind, 1977), o diretor fixaria de vez Michael Kahn como seu editor de carteirinha.

Independentemente do nome do profissional responsável pela edição, o fato é que os filmes de Spielberg mostram – e em A Louca Escapada já há alguns flashes disto – que seus planos possuem uma variedade de elementos visuais bem maior do que os críticos costumam enxergar.

Por fim, A Louca Escapada já aponta para um tema recorrente na obra spielbergiana: a cisão da família provocada pela separação dos pais. Ainda que, aqui, o casal de protagonistas não esteja propriamente separado de direito, os erros que eles cometeram no passado provocaram seu afastamento de fato. Esse mesmo tema voltaria, explicitamente ou não, em Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T. e Guerra dos Mundos.

No resumo da ópera, muito mais importante que gostar ou não de A Louca Escapada (a essa altura do campeonato, quase 40 anos após seu lançamento, essa questão me parece irrelevante), sua revisão serve para nos mostrar que o Spielberg que conhecemos hoje está todo lá. Suas virtudes e defeitos. Suas características. Seu estilo. O traço que o identifica, que o distingue em relação aos milhares de outros diretores de cinema, aquilo que nos permite dizer: “Poxa, isso parece um filme do Spielberg!”.

Com todos os defeitos que se pode apontar para a carreira de Spielberg, sua obra como produtor e diretor se impõe e fala por si. Por ser indiscutivelmente um dos cineastas que mais influenciaram o cinema americano pós-1970, é bem provável que, assim como as gerações atuais estudam e analisam as obras de John Ford e Howard Hawks (para ficar apenas em dois exemplos), os cinéfilos do futuro farão o mesmo em relação com a filmografia de Spielberg. E não serei eu a dizer que eles estarão errados.

Régis Trigo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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