O seu primeiro mês num regime absolutista

Depois de 30 anos de democracia, apoiada por uma Constituição Cidadã, não é simples para muita gente passar a viver num regime autocrático. A não ser que você seja do partido que comanda o Estado. O que não parece ser o seu caso, já que está lendo este artigo e não espionando o vizinho.

O que fizemos aqui foi elencar alguns procedimentos que podem ser benéficos à sua passagem da liberdade à uma eventual privação de ideias e opiniões.

São muitas dicas, mas uma delas é a mais importante de todas: esqueça que você pode se queixar. E, claro, encare o novo momento absolutista com positividade. Até porque, se não fizer isto, não poderá encarar mais nada na vida.

Aquecendo-se na prática autoritária:  busque ver como seus amigos e colegas de trabalho estão se comportando no cotidiano e imite-os. Nas conversas polêmicas sobre minorias, racismo, homofobia e armamento da população infantil faça ouvidos de mercador. Autocracia é cultura de rebanho, quem o abandona, vira ensopado de ovelha.

Paradas militares: como você já deve ter percebido, as paradas gays sumiram. O que se vê são apenas paradas de tropas e equipamento bélico. E elas acontecem semanalmente. A sua presença não é obrigatória, mas, os que não vão, perdem o direito à Previdência Social e ao SUS. Na segunda falta, perdem o R. G. e o CPF. Por isso, é melhor não faltar. Mais: tente chegar cedo e arrume um lugar perto do palanque das autoridades. Não basta ir à uma parada militar, é preciso ser visto. Leve os familiares.

Empregos femininos: você, do sexo feminino, já sacou que o seu salário não se equipara aos dos homens. Onde ele tem um pouco mais valia é nas Forças Armadas. Mas só para as mulheres soldadas, as que efetivamente preparam o grude nos quartéis e faxinam tudo.

Ativismo social: não há ativismo social no absolutismo.

Armamentos: tire proveito, ao máximo, da possibilidade de se autodefender. Cada cidadão tem direito a receber do Estado um revólver calibre 38. Para desburocratizar o país, as pessoas não precisam mostrar documentos às autoridades. Basta apresentar a arma e está liberado. Em breve, poder-se-á fazer uma série de operações úteis com um 38, como sacar dinheiro, pagar contas e carregar o celular pré-pago.

Voluntariado: é de bom tom oferecer-se como voluntário para dar aulas de educação moral e cívica em escolas públicas. Não é necessário saber nem moral, nem cívica, nem ler livros de Hobbes para a classe. Durante as aulas, aja como os professores agiam no tempo da ditadura: converse com os alunos sobre futebol e conte piadas. Nas provas, deixe todo mundo colar. Essa ditadura não será diferente da de 1964.

Escolhas culturais: opte por revelar seus conhecimentos apenas sobre música sertaneja, hinos evangélicos, filmes pornô estrelados por deputados e quadros de Romero Britto. Já será o suficiente para mostrar que tem verniz intelectual. Um ótimo tema para conversar em jantares e outros eventos sociais é a defesa de que a terra é plana e Adolf Hitler era de esquerda. Citar Olavo de Carvalho também mostra pertencimento ao grupo.

Detalhe importante: nunca diga o nome Chico Buarque nesses ambientes.

Adote uma postura proativa: é difícil acostumar-se a um regime supremacista branco. Ainda mais em um mês. Contudo é importante manter-se confiante no futuro e até mesmo ficar sempre bem humorado. Recorde-se que estão, no fundo, facilitando as coisas para você enquanto cidadão. Gastar saliva com discussões políticas, dar palpite sobre problemas do seu bairro, sair de casa para votar, tudo isto – e muito mais – agora é feito pelo governo. E ele só cobra a sua aquiescência. Retribuir a essa ajuda na forma de um bonito sorriso é o mínimo esperado.

22 outubro|2018

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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