Acostume-se

A imprensa não deixará de escrutinar o poder porque seus detentores adotam a tática da intimidação

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, parece obcecado com este jornal. No dia seguinte ao pleito, quando tradicionalmente candidatos vitoriosos desfilam com discursos magnânimos, ele se desviou do protocolo e voltou a ameaçar a Folha.

Ao Jornal Nacional, da TV Globo, reclamou de reportagem que em janeiro revelou o emprego indevido de uma servidora de seu gabinete da Câmara dos Deputados. Na época, afirmou, ela estava em férias e por isso foi localizada em Angra dos Reis (RJ), onde o deputado mantém uma casa de veraneio.

Bolsonaro deixou de dizer, no entanto, que exonerou a funcionária após nova visita de jornalistas da Folha ao balneário, em agosto, constatar que o desvio continuava. O Ministério Público abriu investigação para apurar se o deputado cometeu improbidade no caso.

Seria apenas mais um episódio desimportante de memória seletiva de um político se o presidente eleito não tivesse aventado se vingar da Folha quando assumir o Planalto, cortando-lhe verbas publicitárias federais. “Imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos”, afirmou.

Pela primeira vez na história da Nova República, o eleito para servir à Constituição no cargo mais elevado sugere descumprir, uma vez empossado, o princípio constitucional da impessoalidade na administração. Está documentada a afronta, de resto reincidente.

Se mostra disposição para discriminar veículos da imprensa entre amigos e inimigos, que dirá quando os interesses em jogo tiverem mais vulto. Nessa toada logo surgirá a “bolsoburguesia”, composta de empresários palacianos abençoados pelo acesso privilegiado a fundos e regramentos federais.

Não foi ameaça, mas apenas crítica à Folha, tratou de aduzir o advogado Gustavo Bebianno, assessor do capitão reformado, talvez sentindo cheiro de questionamentos formais à frente. A distribuição da verba publicitária, afirmou, obedecerá a critérios técnicos. Este jornal vigiará os próximos lances em situação confortável, pois não depende de propaganda federal.

Depende do público leitor, parte do qual de pronto reagiu à truculência verbal de Bolsonaro e lançou uma campanha espontânea por assinaturas. Depende de seus anunciantes privados, que continuam a confiar na sua marca.

Depende da reputação decantada ao longo de décadas de fidelidade ao cânone do jornalismo profissional —gentilmente reconhecida pelo editor-chefe do Jornal Nacional, William Bonner, diante da parvoíce pronunciada por Bolsonaro.

Veículos como a Folha não deixarão de escrutinar o exercício do poder porque seus detentores de turno resolveram adotar a tática da intimidação. Jair Messias Bolsonaro não precisa aprender a lição. Basta que se acostume com o fato.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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