Se eu fosse para uma ilha deserta (engraçado como todo escritor é ameaçado com isto, e é obrigado a escolher o livro que vai levar!) levaria “Obras Completas de Raymond Queneau”. Por muitas razões; a mais pragmática delas é que a obra de Queneau é imensa e variada. Num só volume eu teria romance, conto, poesia; romances fantásticos como “As flores azuis”, romances humorísticos como “Zazie no Metrô”; poesia cósmica; jogos de palavras; exercícios de estilo; recenseamento dos escritores e cientistas fora-de-esquadro.
Queneau era um trocadilhista, um fazedor de frases, um rei do texto de duplo sentido, ou melhor, do texto que parece infinitamente capaz de novos sentidos. Era um matemático diletante e estabelecia às vezes regras matemáticas que orientavam a composição de um livro, como o número de linhas de cada capítulo (Osman Lins fazia algo parecido em “Avalovara”). Sua obra tinha um impulso lúdico, irreverente, capaz de desviar o assunto no meio de uma argumentação seríssima para fazer um trocadilho bobo e depois prosseguir em alto nível retórico. Seus livros são intrincados e brincalhões.
Sua experiência mais ousada foram os “Cem Mil Bilhões de Poemas”, de 1961, um texto combinatório em que as 14 linhas que fazem o soneto podem ser recombinadas em 10 matrizes diferentes, dando o total possível previsto no título. Queneau chegou a editar um livro com as linhas dos sonetos separadas em faixas horizontais, numa edição que bibliófilos já chamaram “uma das mais belas aventuras tipográficas e criativas do século”. Uma experiência que agora se realiza plenamente com a Internet. Neste saite (http://bit.ly/vuDr65) é possível recombinar não apenas os versos originais em francês como a tradução de cada um para o inglês.
Queneau teve a precaução, é claro, de fazer com que cada linha específica do soneto tivesse a mesma rima em todas as versões, para permitir o rodízio entre elas. Além disso, as ligações sintáticas entre os versos, embora tênues, continuam permitindo, após a troca das linhas, uma leitura corrida, fazendo encadeamento com os novos sentidos. É uma façanha técnica impressionante.
O resultado, como ele comentou, é uma quantidade de poemas que nem toda a humanidade poderia ler. Alguém dirá: Isso é poesia? A resposta é: Nem toda poesia pode ser assim; isto é apenas um vislumbre do quanto a poesia é capaz. Assim como as exibições de uma ginasta olímpica nas barras assimétricas servem para nos lembrar do que o corpo humano é capaz, mas ninguém espera que todos os corpos se comportem daquela maneira no dia-a-dia.
Queneau escreveu O Maior Poema do Mundo; isto não é tudo, mas também não é pouco.