Marielle surge no caso Queiroz para assombrar começo do governo Bolsonaro

Se há um tipo de assombração que refuta exorcismos ou visitas dos céticos de programas de TV é aquela que ocorre no ambiente da política.

Veja o caso do PT. O partido passou, com fracassos e sucessos, 13 anos no poder. Mas nunca livrou-se do espectro que o assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André que iria coordenar o programa de governo do então presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva em 2002.

Morto às vésperas da campanha, Daniel virou personagem central de nove entre dez teorias conspiratórias da política brasileira. Reviravoltas, mortes de testemunhas, tudo contribuiu para a aura de mistério do caso —cuja versão de queima de arquivo sempre foi tratada como verdade pelo hoje presidente Jair Bolsonaro.

Na campanha eleitoral, ele chegou a comparar a nebulosidade em torno do homem que o esfaqueou em Juiz de Fora com uma suposta trama petista de violência e sangue no ABC paulista.

É portanto irônico que a maior dor de cabeça dessa alvorada de governo, o imbróglio do primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro, esteja se aproximando lentamente de um outro cadáver famoso: o da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), executada no ano passado no Rio.

Os pontos de ligação ainda são tênues, mas extremamente incômodos para o governo. Em resumo, o gabinete do senador eleito Flávio enquanto ele era deputado estadual no Rio empregou a mulher e a mãe de um ex-capitão da PM que é investigado por ligação com as temíveis milícias que assolam a capital fluminense.

O grupo a que o policial estava associado é, por sua vez, investigado por suspeita de operar em ações criminosas que eram alvo de denúncias de Marielle. Que a vereadora foi morta por milicianos, há poucas dúvidas. Se houver eventual ligação daquela gente com o gabinete do filho do presidente, aí a palavra a usar é escândalo.

Por evidente, não se está falando aqui de qualquer conexão entre o senador eleito e o crime, mas sim de uma realidade política. Também não é um novo caso Celso Daniel, claro, pela total desconexão entre o papel dos protagonistas e o enredo.

Mas é uma assombração, digamos, a fazer companhia à já atuante versão ainda encarnada que atende pelo nome de Fabrício Queiroz —o altamente enrolado ex-assessor de Flávio, já responsabilizado pelo senador eleito por quaisquer contratações indevidas.

Do ponto de vista de imagem, a coisa fica particularmente complicada porque Marielle virou um símbolo, dentro e fora do Brasil, de vítima de um país truculento e autoritário que não dá certo, que não protege suas minorias. Ela foi antagonista do que defende o clã Bolsonaro e seus partidários do PSL, alguns deles que inclusive vandalizaram uma placa em sua homenagem.

Se o caso está à porta de Jair Bolsonaro, a culpa é dele mesmo, que deixa um apoplético filho vereador participar de reuniões ministeriais e leva outro para a Suíça com status ministerial —o deputado Eduardo pode ter um convite para Davos, mas viajou como um igual ao lado de dois superministros e do chanceler na cabine reservada do Aerolula.

Enquanto o clã apenas se retroalimentava de práticas usuais do baixo clero, com uma personal trainer para cá, um assessor para lá, o tratamento dado a isso era algo leniente —um erro da imprensa e da classe política. Chegando ao grande palco, o cipoal de insinuações no Rio não será deixado de lado, por tenebroso que é e pelo potencial de impacto que tem.

Para Bolsonaro, a desgraça é que a hora de levantar um cordão sanitário já passou. Tudo indica que o presidente vai apenas dobrar a aposta enquanto as investigações correm, o que pode dar certo. Ou totalmente errado.

Com tudo isso, não parece um mero detalhe que o vice em exercício na Presidência, Hamilton Mourão, tenha feito uma pequena adequação em seu discurso sobre o caso. Antes, ele não interessava ao governo. Nesta terça (22), instado a falar sobre a questão das milícias, ele adicionou um “por enquanto” à avaliação.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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