Will Eisner foi um maiores gênios da arte quadrinizada. Muito mais do um extraordinário autor/desenhista, criador de um personagem admirável, chamado The Spirit, Eisner foi o precursor da moderna HQ. Foi ele que enriqueceu a trama narrativa e trouxe para os quadrinhos as primeiras inovações gráficas. Mais ainda: tirou as historietas daquele marasmo pictórico inicial e deu vida de verdade aos heróis de papel. Introduziu nos comics o humor, a ironia, a linguagem cinematográfica e os diversos planos, incluindo o close e o super-close up – como bem assinalou, certa ocasião, outro admirador de carteirinha de Eisner: Jô Soares.
Em meados de 1940, quando Super-Homem, Batman, Capitão América e outros personagens fantasiados já desfilavam toda a sua onipotência nas páginas das revistinhas ilustradas, o herói de Will Eisner não passava de uma pessoa comum, sem nenhum poder sobrenatural. Nem uniforme tinha. Usava terno e gravata, como todo mortal classe-média. E chapéu, como mandava o figurino da época. Como disfarce, apenas uma pequena máscara negra.
Mas nem tudo eram rosas na vida de Spirit. Uma aura de mistério envolvia o herói, a começar pelo seu habitat, localizado no Cemitério Wildwood, nos arredores de Central City. Também a sua verdadeira identidade jamais foi revelada, a não ser para uma reduzida corte integrada pelo amigo Ébano, pelo comissário-de-polícia Dolan e pela filha deste, a louríssima Ellen, que Denny Cold namorava à moda antiga. E ele apanhava prá burro dos fora-da-lei.
— Como todas as boas ideias já tinham sido usadas – confidenciou o autor –, Denny Colt teve que se virar como pôde. “Sem superpoderes, sem super-uniforme capaz de lhe dar vantagens sobre as pérfidas forças do mal. Ele tinha que combater o crime, correndo o risco de se arrebentar. Afinal, era de carne e osso como qualquer humano”.
No entanto, The Spirit foi um dos mais notáveis personagens dos quadrinhos de todos os tempos e uma das mais bem sucedidas empreitadas no gênero e, por isso, ainda hoje uma referência obrigatória.
Filho de imigrantes judeus pobres, William Erwin Eisner nasceu no bairro do Bronx, em Nova York, em 1917. Foi vendedor de jornais e percorreu todos os cantos da grande cidade, conhecendo os seus dramas, os seus contrastes e a sua magia irresistível.
— Minha formação é a de um garoto urbano – relatou em uma entrevista de 1990. “Eu estudei em NY. Sei de cada recôndito de Manhattan. Central City era Nova York, e os políticos da cidade eram bem conhecidos. A metrópole foi a minha matéria-prima”.
E Will Eisner soube aproveitá-la como ninguém. Não apenas como cenário para as histórias de Spirit, mas também em uma série de trabalhos memoráveis, que ele denominou “novelas gráficas”.
Pois são essas novelas que a Editora Devir está lançando em dois volumes, que denominou Biblioteca Will Eisner, reunindo títulos anteriormente publicados por outras editoras em edições avulsas.
O primeiro volume, Um Contrato com Deus (formato 16 x 26 cm, 528 páginas, capa dura, R$ 165), reúne, além da novela que o intitula (1978), “A Força da Vida” (1990) e “Avenida Dropsie” (1995). Obras semi-biográficas, focalizam os dramas da cidade de Nova York e de seus habitantes nos cortiços do bairro do Bronx e o mundo miserável dos imigrantes durante a década de 1930. A cena inicial de “Um Contrato com Deus” é antológica. Abre com seu personagem – um velho judeu bom e devoto que se sente traído pelo divino, depois de haver perdido a filha adotiva – andando cabisbaixo numa chuva torrencial. Os pingos delineiam as figuras e o cenário.
A Força da Vida narra a vida e os sonhos, as esperanças e os temores de personagens comuns que sobrevivem à Grande Depressão econômica dos anos 30, paralelamente à ascensão da Alemanha de Hitler.
Avenida Dropsie é uma fábula urbana que retrata a metamorfose histórica de uma única rua de Nova York e seus moradores, de uma Nova Amsterdã colonial até o arco-íris étnico do início do Século 21.
O segundo volume apresentará Um Sinal do Espaço (1983), Pequenos Milagres (2000) e Assunto de Família (1998).
Pena que a seleção não tenha obedecido à cronologia original.
Ficam faltando – talvez para um terceiro, um quarto e até um quinto volumes, “O Sonhador” (1986), “O Edifício” (1987), “No Coração da Tempestade” (1991), “Pessoas Invisíveis” (1992), “Narrativas Gráficas” (1996), “A Princesa e o Sapo” (1996), “O Último Dia no Vietnã” (2000), “O Último Cavaleiro Andante” (2000), “New York: A Vida na Grande Cidade” (2000), “Fagin, o Judeu” (2003), “Sundiata, o Leão de Mali” (2003), “A Baleia Branca” (2003), “O Nome do Jogo” (2003) e “O Complô” (2005), a sua obra mais política, um ensaio gráfico sobre a história do livreto “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, concluído um mês antes de sua morte
Will Eisner morreu em 3 de janeiro de 2005, em Laurdardale Lakes, Flórida, devido a complicações cardíacas depois de uma cirurgia. Iria fazer 88 anos.