A revolução cultural cristã

Os cristãos emergem na escrita de Nixey como um bando de talibãs fanáticos

A violência é a parteira da história. Essa ideia era comum entre intelectuais de esquerda no século 20. Hoje, a ideia é politicamente incorreta. A esquerda se fez vegana. A expressão Revolução Cultural chinesa era objeto de orgasmo para gente chique como Sartre e Beauvoir: a via maoísta. 

A Revolução Cultural chinesa nos anos 1960 foi um massacre. Uso a expressão revolução cultural cristã aqui como analogia com a Revolução Cultural chinesa.

O cristianismo teve sua revolução cultural principalmente entre os séculos 4º e 6º d.C., após a conversão do imperador Constantino (272 d.C. – 337 d.C.). Foi violenta, sangrenta, boçal e eficaz, como a chinesa. Mas, enquanto pega bem louvar a chinesa, é chique, nos jantares inteligentes, xingar a cristã.

É justamente a revolução cultural cristã que a jornalista britânica Catherine Nixey narra no seu excelente livro “A Chegada das Trevas: Como os Cristãos Destruíram o Mundo Clássico” (pela editora portuguesa Desassossego).

A rigor não há nada de novo no que ele narra, para quem conhece um pouco do traçado, mas o livro tem inúmeros méritos: conciso, elegante, bom aparelho crítico com relação às fontes, oferecendo uma bela síntese do modo como muitos cristãos, entre eles os famosos monges do deserto, chamados por ela de “fedorentos”, destruíram templos, estátuas, pergaminhos (livros) e fontes essenciais do que era a cultura clássica.

Esses cristãos emergem na escrita de Nixey como um bando de talibãs fanáticos e bem distantes da ideia que se tem desses heróis do paliocristianismo. Nomes como João Crisóstomo, Santo Agostinho e Basílio Magno saem bem chamuscados depois das passagens em que ficam claras suas reservas para com a
cultura clássica.

Nixey reconhece que muito foi salvo graças a cristãos cultos, mas, como ela mesma repete, muito, muito, muito mais foi destruído graças às taras da maioria dos idiotas da fé. Filha de pais cristãos, Nixey está longe dos tiques nervosos do anticlericalismo típico de quem conhece pouco do cristianismo em geral.

O mundo clássico era belo, rico, produtivo e com tendências que chamaríamos, anacronicamente, de tolerante, em oposição ao cristianismo, que, com sua marca monoteísta e proselitista, varreu o mundo greco-romano com a sanha do Deus único.

Mas Nixey não é nenhuma idealista do mundo clássico. Por exemplo, sua descrição dos banhos romanos, objeto de ódio dos cristãos “puritanos”, não deixa dúvida: eram imundos, fedorentos, promíscuos. Sua água fedia e a chance de você pegar todo tipo de doença era enorme.

Todavia, a revolução cultural cristã, como a chinesa, devastou a herança clássica. Teríamos mais tesouros, além de Platão, Aristóteles, Sófocles, Marco Aurélio, Sêneca, entre outros, se esses malucos fanáticos não tivessem se posto a destruir as fontes. No que tange à beleza dos templos greco-romanos, a devastação foi monstruosa.

Um dos pontos mais fortes do livro está no desmonte da ideia de que os oficiais romanos eram, na sua maioria, uns tarados pelo sangue inocente cristão.

A análise dos autos em que oficiais romanos tentavam salvar cristãos fanáticos do martírio é excelente. Muito distante da falsa imagem que parte da história oficial do cristianismo e o cinema construíram, a maioria dos oficiais romanos era gente razoável que estava muito longe de querer “rolo” com um bando de fanáticos.

E aqui, vem, a meu ver, o coração da tese da autora. Descrevendo um desses oficiais romanos encarregados de lidar com a sanha fanática dos mártires malucos, Nixey diz algo assim: “Como membro da elite romana, e de toda elite, era um homem bem educado o bastante para não crer na religião, qualquer que fosse ela, mas, também, era bem formado o bastante para não desdenhar de nenhuma delas”.

Aqui reside toda a diferença de uma verdadeira atitude culta em relação às religiões: se, por um lado, a adesão a elas revela uma certa pobreza de espírito, o desprezo para com elas, revela uma certa pobreza de alma. Desdenhar das religiões é um atestado de fraqueza intelectual.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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