Degina Ruarte, um diário

“Querido diário: vc nem imagina o que aconteceu hoje! Bair Jolsonaro quer me ver em Brasília. Que será esse lindão quer comigo?

“Querido diário: que roupa levar? Gosto muito duma blusa vermelha com calça branca. Não, não, deixarei essa para entrevistas marcantes na tv.”

“Inacreditável, querido diário: Bair Jolsonaro (BJ) me sondou para ser secretária especial da cultura! Nunca imaginei interpretar um papel desses, exige muito preparo e, segundo ele, pouca cultura. Por isso pedi tempo pra ensaiar em casa. Resumo: tamo namorando.”

“Querido diário: depois de uns dias refletindo diante do espelho oval no quarto, vou ao encontro do BJ. Ele não desiste da ideia de ter uma estrela no governo dele cheio de 4 estrelas.”

“Querido diário: fui e já voltei. Noivamos! Isso me dá tempo pra ter certeza das tantas indecisões que terei que assumir. Como o BJ é muito bom em avança e recua, sei que estou apta. Mas prazo pra dizer sim nunca é demais.”

“Diário amado: casamos! Tive que aceitar o convite, senão BJ iria ter que pôr alguém fardado na cultura e, cá entre nós, meu guarda-roupa é mais versátil!”

“Querido diário: agora devo me mudar. Digo, mudar de endereço, porque deixar de ser quem sempre fui seria me tornar quem nunca fui, coisa complicada. Nem nas novelas da Grobo tive esse tipo de desafio. Vou pra Brasília mas você, diário querido, vai comigo. Só você me compreende!”

“Querido diário: que coisa linda a cerimônia da posse. Adorei o discurso, sobretudo a parte que BJ me negou carta branca com toda a delicadeza. Gente fina. Falei pro Brasil todo, mostrei que a cultura está em boas mãos, e álcool gel não há de faltar. A namoradinha do Brasil virou soberana. Viva!”

“Diário do meu coração: é muita reunião! Pra eu escapar de uma reunião num setor só estando em outra reunião em outro setor. Me disseram que burocracia é assim mesmo, senão não dá pra entravar nada. Meu departamento é ótimo, todo departamentado.”

“Estou braba, diário: os dias passam e as coisas bacanas que pensei pra cultura saem da minha gaveta e são engavetadas em não sei quantas mais por aí na esplanada dos mistérios, digo, ministérios. Minha secretária parece que não me entende, e ainda bem que é recíproco. Afff!”

“Diário querido: tá um horror, é trâmite pra lá, trâmite pra cá, e BJ nem me recebe mais. Meus planos pra classe artística estão em banho-maria e o balde de água fria. Meus colegas da Grobo me cobram mais ação, e já disse que não invisto na Bolsa. Pra quê tanta pressão se é pra tudo ficar na mesma né?”

“Diário, diário: lembra daquela fala do circo, do pum do palhaço? Tenho sofrido muito por conta das repercussões. Gente que não sabe achar graça no circo, que coisa aborrecida. Vamos em frente, que essa é a direção do calendário.”

“Diário de Deus: demitiram um assessor meu sem eu saber. Não, para: eu que demiti e depois readmitiram sem eu saber. Sei lá, sinto cheio de óleo quente ao meu redor.”

“Querido diário: tá feia a coisa. Além da pandemia, começou a morrer artista. Resolvi que vou ficar quieta para dar a impressão que estou quieta. Assim não corro o risco de causar mal-entendidos. Já bastam os do governo né? O jeito é me animar.”

“Tô animada, diaríssimo: fui convidada pra falar dos meus 60 dias no governo! Nem percebi que passou tudo isso. Vou pra TV com minhas propostas emperradas, relatórios truncados, instruções e minutas vazias. São duas chances: de mostrar pro Brasil como aprendi a ser o que não sou e de usar de novo a blusa vermelha e a calça branca.”

“Ai, diário, ai: o que foi aquilo, diário? Tava tudo combinado e descombinaram tudo. Puseram um cemitério nas minhas costas, desde os artistas e escritores que morreram logo agora no início do meu secretariado. Inclusive os mortos da ditadura, que nem da cultura eram! Ai, fui toda leve, e me jogaram o passado nos ombros. Até cantei Pra Frente Brasil pra levantar o astral mas ninguém me acompanhou. E o BJ não telefona, não escreve, não manda flores…”

“Diário meu: Ai, diário, por que a Praité Moença e a turma dela dão tanta importância à cultura, hein? Que saco, no gabinete não se faz nada mas não param de falar sobre cultura da manhã à noite. Não tem outro assunto, não?”

“Hoje tive um chilique fora da TV, diário. Foi na cozinha: pus óleo na frigideira para uma omelete matinal e o cheiro, sei lá, metaforizou. Tô apreensiva, diário, não posso nem ouvir a palavra fritura.”

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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