Quadrinho também é cultura

Quando soube que eu estava escrevendo um livro sobre as histórias-em-quadrinhos, um conhecido de pouca convivência, assustou-se. Não sabia dessa minha “especialidade”. E deve ter ficado surpreso com o meu (mau) gosto e/ou com o meu despreparo intelectual com esse tipo de literatura. Confirmei que era (ou fora) leitor de gibis, mas cortei, desde logo, um longo e inútil debate, limitando-me a atribuir o fato a um “defeito de formação”. Ou seja, disse-lhe que a culpa fora do meu saudoso pai, que – lá pela jurássica década de 40 do século passado, quando a televisão era um sonho distante e os computadores apenas loucuras de Júlio Verne – resolvera instigar nos filhos o gosto pela leitura, de Charles Dickens e Alexandre Dumas a Monteiro Lobato, Alex Raymond e Walt Disney.

Mas poderia ter-lhe dito que gibi não é algo tão ruim assim. Ou não era. Ou então, valendo-me das palavras do sociólogo Gilberto Freire, nos idos de 1949, que “as histórias-em-quadrinhos são uma forma nova de expressão contra a qual seria tão quixotesco nos levantarmos quanto contra o rádio, o cinema e a televisão”.

Poderia ter-lhe dito, também, como o fez Al Capp, o “pai” de Ferdinando (originalmente Li’l Abner), Violeta Buscapé e de toda a turma de Brejo Seco, cujo nome foi sugerido pelo escritor John Steinbeck para o Prêmio Nobel de Literatura, que toda a objeção e hostilidade às HQs não passam de “puro esnobismo” intelectual.

– As histórias-em-quadrinhos são o melhor tipo de arte em produção na América – sustentava Al, complementando: “Se muita gente não acredita nisso é por causa de uma lavagem cerebral que levou as pessoas a pensar que nada desenhado a caneta ou a lápis, em forma de tiras ou de páginas, pode ser arte. Mas se você desenhar a mesma coisa em formato gigante e a óleo, pronto, o negócio vira arte!”

Rui Barbosa lia gibis. Oswald de Andrade e Monteiro Lobato também. Aliás, em sua Carta a Monteiro Lobato, Oswald assentou: “Os mitos do século XX foram postos a nocaute pelo mocinho russo, pelo marinheiro Popeye e pelos vaqueiros justiçadores do sertão. E o super-homem de Nietzche não pôde com o Super-Homem do gibi”.

Ruy Castro, jornalista, escritor e estudioso dos comics, que assinou uma das primeiras colunas sobre gibis na imprensa brasileira, informa que pesquisa realizada nos EUA mostrou que 90% americanos leem e confessam que leem histórias-em-quadrinhos.

É claro que, como nem tudo o que brilha é ouro, nem tudo o que se edita em quadrinhos presta ou merece ser levado para casa. Mas isso não acontece com toda a atividade humana? Para Umberto Eco, escritor e um dos maiores especialistas do mundo em comunicação de massa, cerca de 95% dos quadrinhos não valem nada, 4% têm um correto nível artesanal e apenas 1% é composto de obras-primas. E não é o que acontece com o cinema, a pintura e a literatura em geral? Ademais, esse 1% aí já representa um universo inteiro.

Aliás, depois que o gaúcho Francisco Araújo transformou as HQs em disciplina acadêmica e passou a discuti-las em sala de aula, na então avançada Universidade de Brasília dos anos 70, elas viraram até tese de doutorado.

 – Como linguagem – ensinava Araújo –, os quadrinhos são tão importantes e eficazes que podem ser utilizados dentro de qualquer linha de pensamento, já que eles são sempre neutros.

Nem sempre, meu estimado Araújo, mas deixa prá lá.

P.S. I – Com o título de “Quadrinho também é Cultura”, escrevi e montei um livrinho de 100 páginas, reunindo textos que eu escrevera para O Estado do Paraná, no final dos anos 90. Coisa caseira, de apenas dez exemplares, um dos quais foi exposto por Aldemário de Matos, na Livraria Gibi, em São Paulo, e assanhou muita gente.

P.S. – Conclui a montagem do outro livrinho – agora já “livrão” – que vinha escrevendo (“A Arte que está no Gibi”). Chegou a 160 páginas, a partir do pioneiro Garoto Amarelo (Yellow Kid) até chegar a Asterix, do recém falecido Albert Uderzo. Inclui, inclusive, o texto acima. Como certamente não haverá interessado em editá-lo, o calhamaço vai para o arquivo. Talvez saia um dia, como obra-póstuma.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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