Sidus

Consta que os marinheiros de Hérida procuraram, por longo tempo, a ilha de Sidus onde – comentava-se por todos os portos e mares -, deambulavam os mortos mais ou menos recentes. Nunca além de há sete anos.

Sobretudo os mortos que, por merecimento, haviam trilhado os caminhos da Terra, os pés descalços, dias e noites, pela exaustão dos meses e dos anos a vagar o mundo que lhes foi dado uma única vez. A levar, com eles, a nua oferenda das mãos e o sincero gosto pela luz de Antares que, já sabiam os antigos, era a maior estrela de todo o incalculável universo.

Ilha misteriosa e percuciente, a ilha de Sidus, segredavam, provia os mortos não das coisas do espírito, como seria o esperado, em se tratando dos mortos, mas de pão e vinho, porque, em Sidus, frisava a lenda, os mortos não morriam mais. Dançavam ao sol de Antares, livres e mortos numa serenidade fluida, amorosa. Nada a ver, claro, com a nervosa azáfama dos vivos.

Pássaros e gnomos, leões e centauros, sereias e lêmures – tudo em Sidus era a severa conspiração contra o canhestro modo como os vivos insistem em chamar de vida a um viver sem conta nem remédio, sem solução nem segredo.

Por isso mesmo, de todas as ilhas sonhadas pelos argonautas do arquipélago de Hérida, ou de fora dele, Sidus foi, sem dúvida, a mais insistentemente perseguida, a mais intensamente desejada de todas quantas ilhas existissem ou viessem a existir, aquele tempo, perdidas oceano afora.

Mas como não permitir que os mortos morressem se, a cada dia, seguiam morrendo mais e mais – sobretudo pelo esquecimento dos vivos, habituais em levar suas existências ao sabor do vento? Alheios, como sempre, de que pudessem morrer um dia. Ainda que soubessem, os vivos, da certeza quase prosaica, de tão absoluta, pela qual, mais cedo ou mais tarde, os vivos morremos irremediavelmente. E nem há como se curar da morte.

Era aí, entanto, que todos se enganavam – em Sidus, geralmente depois de sete anos, os mortos bebiam das águas do enigmático lago Abrantes e, de modo lento, começavam a deixar de morrer. De profundos passavam a inquietos, e os olhos cerrados deles, dos mortos, abriam-se feito a desassossegada flor do acordar mais imenso.

Ato contínuo, sobre o dois pés a palmilhar as longas praias, agitavam-se excitados e vivos, já bem molestados pelo jugo de existir – o inferno e a agrura, o calor que lhes tomava os corpos feito fossem eles, os recém-vivos, altas labaredas; e o júbilo que lhes tangia os ossos e igualmente os angustiava como se não o merecessem, como se nunca o tivessem merecido.

Velhos nautas, quase aedos, de Sidus diziam que o maior pecado não era o de procurar a ilha, sob esforçado empenho, mas o duro ofício de esquecê-la, de a terem de esquecer um dia – justo quando passassem da vida à morte sem volta nem esperança.

Wilson Bueno [04/11/2007]O Estado do Paraná.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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