Helena

Desde que fui expulso da Itália por haver escondido uma holandesa de bom tamanho no quarto que me fora cedido por algumas liras semanais eu não via Helena. Era um ano febril, de grandes desfalques e imensas recordações, mas pesar de tudo ainda se conseguia um bom martini no Ferruci.

Na época da expulsão, duas dolorosas semanas antes, fui internado no Hospital de Estrangeiros, como convém a todo estrangeiro doente, com uma crise renal, de vital importância na ocasião. O Hospital de Estrangeiros nunca fora o local indicado para se cortejar enfermeiras, pois lá sempre houve uma disciplina muito rígida, desde que um árabe com cirrose fugira com a anestesista de plantão.

Além das visitas de um médico baixinho de óculos, cujo nome, pela cara sardenta e gorda devia ser Rosco, já que todo baixinho com a cara sardenta e gorda na Itália descende dos Rosco, quando não dos Pupazzeto, eu era visitado por um compatriota hediondo com hepatite e por Helena, que me proporcionava ereções regulares quando tirava minha pressão, se é que eu a tinha.

Como estrangeiro, estava ali de passagem, até que a crise renal permitisse que eu voltasse novamente às ruas para me encharcar desesperado com os martinis do Ferruci. Durante minha estadia naquele depósito de doentes sem pátria, desfrutei de tudo aquilo que Helena me podia oferecer: seu estoque de maçãs e biscoitos e seu corpo, um labirinto de paixões desenfreadas.

O porte físico de Helena era de tal modo magistral que se assemelhava à Úrsula Andrews dos bons tempos! Tirando as queixas de falta de ar do cubano do 409, a rotina tomava conta do Hospital. O Sanchez, era esse o nome do cubano, era na verdade um molenga, internado com problemas auditivos. Não sabia distinguir rumba de samba-canção, mas quem é que ligava pra essas coisas quando o importante era tão somente a vida?

Certa vez, não suportando a falta de ar, arremessou o rádio de pilhas contra o plantonista, um pobre coitado que se atrevera a executar “Granada” em arranjo para seringa de injeção.

A vida se apresentava radiante naquela primavera, só perdendo o brilho quando Helena e eu éramos surpreendidos em colóquio no banheiro encardido da pobre ala na qual fui obrigado a permanecer quando souberam que eu era do Terceiro Mundo. O tempo passava depressa quando as dores deixavam.

Uma vez por dia um médico baixinho me obrigava a uma micção cautelosa num vidrinho manchado que eu sempre acreditei ser um frasco de menor valor, pois ninguém no mundo fabrica vidrinhos com a intenção de servirem como recipientes de urina doentia para exame. E lá com meus botões eu conversava, ora em italiano, ora em dialeto siciliano, não sem antes tagarelar pelos corredores do Hospital feito estrangeiro com problemas nos rins. Quando dei por mim, estava fora dos muros amarelados do Hospital, no Ferruci.

Quando dei por mim, estava fora dos muros amarelados do Hospital, no Ferruci. Com a cara parcialmente cheia, atormentado pelas preocupações em reaver meu passaporte perdido, juntamente com um relógio banhado a ouro e um maço intacto de Belmont de minha ousada coleção de cigarros, para um italiano bêbado que se dispusera a me enfrentar num pife demorado que se prolongou até o amanhecer e do qual não tenho motivos para ficar relembrando.

Cansado de comparecer aos prostíbulos sem o meu passaporte e não podendo mais evitar o compromisso, chacoalhei o paletó xadrez e me pus num táxi, a caminho da casa de Helena, na mesma esquina onde fora atropelado por uma lambreta maluca em 1960, pouco antes de minha irmã dar à luz ao sobrinho que acabou com o orgulho da família ao roubar duas cabras dos Montini.

As gêmeas Trinatti estavam nuas na janela. Ah, as gêmeas Trinatti! O domingo começava. O táxi rodava silencioso e, a não ser pelo Pepino Di Capri doloroso que tocava no rádio, tudo parecia normal. O velho Corso, sentado na praça, distribuía migalhas envenenadas aos pombos, como sempre. O motorista do táxi puxou conversa, dizendo que Mussolini era ambidestro e que acreditava em Papai Noel.

Mas as imagens da minha infância infeliz no interior não me deixaram dizer uma só palavra ao pobre chofer, que acabou falando sozinho até o fim do trajeto. A rua estava deserta e ao descer do táxi notei um grupo de turistas japoneses saqueando uma pizzaria. Esses japoneses são capazes de tudo, pensei comigo. E debandei em fuga, alameda abaixo.

Ao empreender a fuga fui tomado por um pânico monumental, típico de domadores de circo, mas não me deixei vencer e só fui parar três quadras abaixo, sem fôlego e sem o meu paletó xadrez, arrancado rudemente por um japonês que queria se apoderar de minhas vestes a todo custo. Era um domingo de aventuras, sem dúvida.

Rapidamente me desvencilhei dos cachorros que insistiam em me morder a canela e retomei o caminho da casa de Helena. Por alguns instantes pensei em voltar, atraído pelas delícias que as gêmeas Trinatti ofereciam à clientela aos domingos. Não fosse o alemão Klaus, o dono da pensão, eu as teria levado para repartir comigo o humilde quarto onde residia. Apertei o passo, tentando rechaçar as ideias carnais que se apossavam de mim.

A casa de Helena ficava antes da ponte, num sobrado desbotado que os nazistas quase destruíram completamente em 1944, por determinação de Hitler, que nunca gostou de sobrados desbotados antes das pontes.Era nesse sobrado, com frias escadas de mármore que Helena me recebia para devorar panelões de macarronada que só ela sabia preparar, não sem uma ou duas garrafas de vinho morno previamente encomendadas por Vicenza. Helena houve por bem me considerar de casa, desde o nosso primeiro encontro no Hospital de Estrangeiros, quando tombei sobre os seus seios volumosos e me fiz seu parceiro nas noites mais frias e loucas da Europa, apesar das torturas que os rins me causavam.

Helena era o desaguadouro de minhas paixões. Nossas brigas sempre acabavam em pancadaria, se Vicenza não interviesse atirando polenta pelas paredes e ameaçando suicídio brutal na horta, cortando os pulsos. Mas quando ela desaparecia com aquele grego sem caráter, eu jurava vingança, casando com Vicenza e partindo para a França, levando a charrete e o que sobrasse do almoço.

Mas isso tudo só fortalecia nossas relações e Helena parecia ser a única coisa bela que restara no mundo quando punha seu short curtinho e subia na mesa levemente embriagada e começava a cantar Beguin The Beguine, num ritmo alucinado, verdadeiramente maluco.

Às vezes exagerava na bebida e despencava da mesa, caindo sobre os meus braços ansiosos, ainda úmidos do banho desnecessário que Vicenza me obrigava a tomar na banheira que ganhara dos tios de Milão. Helena gostava de cozinhar, portanto, haveria um almoço digno, com hortaliças e tudo o mais.

Havia um cheiro de carne assada no ar, excessivamente temperada com alho e cerveja, além das trivialidades que um bom assado comporta. Helena preparava um acepipe e, ao me ver, desmaiou. Surpreso com a ação um tanto quanto descortês de Helena, entornei friamente o primeiro copo de vinho e notei, com um certo espanto, que uma prostituta no prédio em frente se oferecia freneticamente ao padeiro. Vicenza ainda não voltara da missa. Os primeiros roncos do meu estômago denunciavam uma fome avassaladora.

(Prof. Thimpor é apedeuta, imbecil, fundador da Sociedade dos Poetas Insepultos, metido a besta e acha que escrever é só juntar palavras)

Revista Ideias 124|125|Travessa dos Editores

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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