Não digo que tinha certa simpatia pelo vice-presidente da República Hamilton Mourão porque não se pode simpatizar por quem incensa o torturador-mor da ditadura militar brasileira, cel. Brilhante Ultra, e chega a considerá-lo “um dos maiores líderes que o nosso exército já teve”. No entanto, na comparação com o seu atual chefe, achava que ele tinha muito mais bom-senso, era capaz de dialogar, inclusive com a imprensa, e se mostrava dotado de certa inteligência – atributos não encontrados na maioria de seus colegas fardados do governo.
Ledo engano. Eis que de repente o general Mourão resolveu fazer dupla m o deplorável Ricardo Salles, ministro do desmatamento, incêndio, grilagem de terras e invasão de áreas indígenas, para garantir, sob o peso do seu cargo, não haver fogo na Amazônia.
Não se sabe se enrubesceu, porque escondia o rosto atrás de uma máscara rubro-negra do Clube de Regatas Flamengo, mas afirmou que “existem 24 mil focos de calor na Amazônia”, mas “são 24 mil em 5 milhões de quilômetros quadrados, um incêndio a cada 200 quilômetros quadrados”. Professorou que “focos de calor não significam incêndios”. Destacou que “onde ocorre queimada na Amazônia é naquela área humanizada [?!], a floresta não está queimando”. E garantiu que “17% desses incêndios são legais…”. O papo-furado virou vídeo com imagens colhidas, sem autorização, do Greenpeace, gravadas em 2015.
E então, seguindo o catecismo governamental, o vice culpou a imprensa pelo pânico que tem causado na população”: “É surreal como as notícias sobre incêndios na Amazônia são divulgadas”.
Com todo o respeito, excelência, surreal é o chefe do Conselho da Amazônia, “grupo criado pelo governo federal para combater a destruição da floresta e incentivar atividades ecologicamente corretas”, vir a público para dizer tamanha asneira, desmentida pelos fatos, pelos especialistas e pelas imagens do dia a dia.
Vivesse no mundo real, onde não cabem mais farsas, mistificações, logros e simulações, S. Exª. saberia que a atual queimada da floresta amazônica é a maior dos últimos 20 anos, com consequências imprevisíveis. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificou 6.803 incêndios na região só no mês de julho de 2020, em comparação com 5.318 no ano anterior, um aumento de 28%. Além do que, os incêndios aumentaram 77% em terras indígenas e 50% em reservas protegidas desde julho de 2019, segundo o Greenpeace.
O fato é que as atividades ilegais estão invadindo essas áreas com o desmatamento, a grilagem e a mineração. O fogo criminoso está exterminando a flora e fauna, com a morte de centenas de espécies, algumas em fase de extinção. E tudo com o beneplácito das autoridades públicas, especialmente as do mais elevado escalão.
Quem tem um mínimo de informação sabe que as queimadas da Amazônia estiveram sempre ligadas às práticas econômicas desenvolvidas na região. A agricultura e a pecuária são as principais e nunca tiveram nenhum controle por parte das entidades governamentais, que sempre assentiram com o avanço da fronteira agrícola nacional. O incêndio é a prática mais eficiente, rápida e barata usada pelos grandes proprietários de terras. No entanto, a prática é criminosa e ameaça o futuro de todos nós.
No afã de conquistar a terra e prepará-la para o plantio e/ou criação de gado, os criminosos provocam a erosão do terreno e o empobrecimento do solo; eliminam a biodiversidade local; afetam a circulação do volume das águas superficiais; alteram as condições da temperatura e da umidade locais; dão causa à emissão de gazes poluentes na atmosfera, contribuindo para o aquecimento global e o efeito estufa, afetando a saúde da população e o clima mundial.
Os bandidos do agronegócio sabem disso, mas não estão nem aí. O general Mourão e o governo do capitão reformado também sabem. Só fingem não saber e saem à cata de justificativas imbecis e inaceitáveis.
“Não há incêndios naturais na Amazônia”, diz Ane Alencar, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “Mesmo que esteja muito, muito seco, é preciso que alguém risque o fósforo.”
As árvores derrubadas para dar lugar ao desenvolvimento econômico são cortadas, deixadas para secar e depois incendiadas. Incêndios adicionais são feitos para eliminar ervas daninhas das pastagens existentes e limpar áreas agrícolas antigas. E esses incêndios podem se espalhar para as florestas vizinhas, como tem acontecido.
Paulo Massoca, pesquisador brasileiro e doutorando na Universidade de Indiana Bloomington, que estuda a regeneração da floresta tropical, por sua vez, frisa que “as queimadas matam as plantas que sustentam o solo e eliminam o solo que sustenta as plantas”. O resultado é o que veremos, com profunda tristeza, muito brevemente.
Apesar da aparência, o solo amazônico é pobre. Os especialistas estão cansados de avisar que, se atual prática de eliminação da floresta continuar, toda a região, num futuro não muito distante, se transformará num imenso deserto de areia, parecido com o africano Saara.
É isso que deseja o preclaro general Hamilton Mourão, vice-presidente da República Federativa do Brasil? Ao que tudo indica, sim.