Depois de levar uma punhalada de ACM Neto, o seu Brutus, e demais cúmplices do DEM, Rodrigo Maia, ainda presidente da Câmara, cogita aceitar um dos pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro — que aliciou com mais de 3 bilhões de reais em emendas e cargos no governo deputados de quase todos os partidos, inclusive o DEM, que deve abocanhar o Ministério da Educação, para que deixassem o barco de Baleia Rossi (sem trocadilhos), do MDB, e subissem no de Arthur Lira, do Progressistas, candidato do Planalto e do Centrão à presidência da Casa. Como relatado pela imprensa, em reunião ontem à noite, Maia afirmou ter em mãos um parecer jurídico favorável à abertura do processo de impeachment.
A política brasileira é aborrecidamente vergonhosa. Assim como vem ocorrendo desde sempre, o que move esse pessoal é a vingança, visto que a única convicção que exibem é a de que o dinheiro do pagador de impostos lhes pertence. Até a semana passada, Maia dizia que o impeachment do sociopata causaria instabilidade indesejável a um país que precisa enfrentar uma pandemia mortífera. Fingia ignorar que a saída de Bolsonaro da presidência da República é parte de um eficaz enfrentamento nacional da crise sanitária causa pela Covid-19. Mas mudou de ideia ao ter o seu tapetinho puxado pelo Planato et caterva. Agora tem até parecer favorável, veja só. Maia é mais do mesmo.
O presidente da Câmara decide monocraticamente pela abertura do processo de impeachment do presidente da República, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal datado de 2015. Trata-se de decisão irrecorrível, sem possibilidade de recurso em plenário. A menos que o STF, uma vez provocado, mude de opinião (o que sempre é possível onde impera a jurisprudência de ocasião), o rito do impeachment seguiria numa comissão e o resto nem Deus sabe.
Maia poderia ter decidido pela abertura de um processo de impeachment no início do ano passado, quando ainda estava forte e Bolsonaro apenas esboçava a compra do Centrão. Teria poupado o país de milhares de mortos pelo vírus. Não o fez. A sua conveniência política prevaleceu. Contentou-se com notas de repúdio às barbaridades cometidas pelo presidente da República. No apagar das luzes como mandachuva na Câmara, quer vingar-se e sair como herói. Assim como Eduardo Cunha fez com Dilma Rousseff. Assim como vem ocorrendo desde sempre, como já dito.
Se Maia abrir mesmo o processo de impeachment, o Centrão vai regozijar-se: poderá cobrar fatura ainda mais alta de Bolsonaro, para mantê-lo no Planalto. Se a popularidade do presidente da República despencar, a rejeição a ele aumentar e manifestações populares de porte ocorrerem, o Centrão mudará de lado sem vergonha (e do que ele tem vergonha?), depois de lambuzar-se com o que lhe foi oferecido por Bolsonaro. O jogo do Centrão é de ganha-ganha; o do Brasil é sempre de perde-ganha-perde. O impeachment de Bolsonaro em 2020 teria saído mais barato em vidas e dinheiro. Por causa de Maia, sairá mais caro em todos os aspectos, se vier a ocorrer. É o que temos no cardápio: vingança, não convicções.
Em 2016, escrevi um artigo sobre o papel da vingança na política brasileira. Escrevi-o depois que Eduardo Cunha se viu cassado e caiu na rede da Lava Jato. A história no Brasil não se repete como farsa porque não temos originalidade nenhuma, as variações de moldura enfatizando o tema único da pintura. Repito-me também, reproduzindo o artigo de quase cinco anos atrás:
“Devemos ao ex-presidente da Câmara, que agora terá de se haver com o juiz Sergio Moro, o impeachment de Dilma Rousseff. Não há como negar: o seu ato de vingança foi essencial para apeá-la do poder. Se não tivesse aceitado o pedido do trio Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal, é provável que Dilma ainda continuasse a presidir o Brasil, apesar de todos os seus crimes e com todas as consequências funestas que isso significaria. Aos petistas restou vingar-se de Eduardo Cunha votando pela cassação dele. Essa história ainda não acabou. O peemedebista disse que contará em livro toda a história do impeachment. Aguardamos ansiosamente, visto que deve sobrar também para os seus colegas de partido.
Livramo-nos de duas pragas graças à vingança, sentimento que ensinamos às crianças ser feio, mas que na política brasileira tem servido como antibiótico. Senão, vejamos:
Em 1992, Fernando Collor caiu porque o seu irmão, Pedro, deu uma entrevista bombástica à Veja, para contar as relações promíscuas entre o então presidente e o seu tesoureiro, Paulo César Farias. Pedro estava fulo com o fato de Fernando ter cantado a sua mulher, Thereza.
Em 2005, a mesma Veja tentou circunscrever o escândalo de corrupção nos Correios, revelado pela revista, ao PTB de Roberto Jefferson. Ao perceber que o PT estava armando para cima dele por meio da Veja, o petebista procurou a revista para denunciar o mensalão e foi repelido (presenciei o fato). Jefferson, então, soltou o verbo na Folha de S.Paulo, para contar que o esquema era muito maior e comandado pelos petistas.
Roberto Jefferson foi condenado no mensalão, assim como Eduardo Cunha será condenado no petrolão. Ambos levaram con- sigo os seus algozes.
A morte dos vingativos é final comum no gênero literário-teatral conhecido como “peças de vingança”, do qual William Shakespeare é o maior mestre. As ‘peças de vingança’ nacionais, contudo, não estão à altura de um bom dramaturgo. Os seus personagens são demasiado estúpidos.
Fernando Collor foi estúpido ao achar que o irmão seria corneado mansamente. O PT foi estúpido ao acreditar que poderia jogar toda a culpa da corrupção governamental sobre Roberto Jefferson, sem que ele reagisse. O PT foi igualmente estúpido ao imaginar que poderia anular Eduardo Cunha na presidência da Câmara, um dos cargos mais poderosos da República.
Havia algo de podre no estado da Dinamarca, para citar a frase de Marcellus em Hamlet, a ‘peça de vingança’ mais popular de Shakespeare. Há algo de podre no Estado do Brasil. Não precisamos, contudo, de fantasmas magníficos para os nossos personagens se vingarem uns dos outros.”
Temos de contar com a vingança, apenas, para termos a impressão fugidia de que algo mudou em Brasília. Aborrecidamente vergonhoso.