No lugar de imunizar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas
No Brasil, em média, vacinamos menos de 300 mil por dia. Sem escassez de imunizantes, seríamos capazes de vacinar perto de 2 milhões. Mas, mesmo agora, poderíamos vacinar facilmente 600 mil. A lentidão, que amplifica as mortes, não escandaliza quase ninguém. A indignação concentra-se na já lendária figura do fura-fila. É que, de fato, mais que vacinar, queremos colocar todo mundo no seu lugar numa hierarquia de prioridades. Na sociedade do espetáculo, passar julgamento moral vale mais que salvar vidas.
A cidade do Rio reservou um dia inteiro para cada grupo etário de um ano, dos 99 aos 80. Vacinas e enfermeiros despendem horas ociosas, diariamente, à espera do idoso “certo”. Legal, isso: garante que o idoso de 89 anos não passe na frente do camarada mais velho, de 93, participante de um grupo de maior risco. São Paulo foi na mesma linha, economizando só um pouco do ridículo: reservou uma semana completa para a faixa dos 90 anos ou mais. Nas unidades de saúde, manhãs inteiras passaram na janela sem a presença de um único “vacinável”. Bem planejado: assim, evitamos aglomerações.
A fila perfeita é, claro, imperfeita. Profissionais de saúde, nossos heróis, vêm primeiro. Daí que imunizamos psicoterapeutas de 60 anos que trabalham online antes de gente comum com mais de 80 anos. A parcimônia cumpre função não divulgada: vacinando bem devagar, escapamos do vexame de interromper a campanha por esgotamento das doses —e, portanto, o governo federal oculta seu atraso na aquisição de imunizantes. Por essa via, na sociedade do espetáculo, o negacionismo de direita estabelece uma aliança tácita com o humanismo de esquerda.
“Somos um país só!”, gritou o Ministério da Saúde na deflagração da campanha da vacina, dizendo nas óbvias entrelinhas que o comando pertence ao governo federal (Bolsonaro), não ao governo paulista (Doria). Mas, num “país só”, a estratégia de imunização em cenário de escassez priorizaria as regiões mais afetadas, que são também os berços de cepas mutantes do vírus. O Amazonas tem cerca de 510 mil habitantes com mais de 50 anos. Já poderíamos ter injetado a primeira dose em todos eles, sem deixar de vacinar os agentes de saúde da “linha de frente” e parcela dos idosos do país inteiro, se o slogan de Pazuello fosse mais que uma peça de propaganda política.
O governador de Nova York, Andrew Cuomo, não desconhece o efeito narcótico da fotografia da fila perfeita. Lá no começo, determinou a imunização exclusiva dos profissionais de saúde —e decretou multa de US$ 1 milhão para quem vacinasse algum fura-fila. Resultado: uma campanha em ritmo de tartaruga manca, em cenário de abundância de doses. Cuomo só mudou de ideia quando emergiram imagens de ampolas descartadas por vencimento de prazo, saltando do zero ao infinito para autorizar a vacinação de todos os idosos com mais de 65 anos. Na sociedade do espetáculo, é a foto errada, não a razão, que provoca correções de rumo.
Quantos artigos destinados a envergonhar fura-filas já foram publicados na Folha? Compare o espaço preenchido por eles com aquele destinado a questionar a eficácia prática de nossos critérios de vacinação. O cotejo oferece uma janela para a paisagem banhada de sol da hipocrisia nacional.
O julgamento moral, fundamento da cultura do cancelamento, está na moda. Apontar o dedo acusador para o fura-fila legal (a psicoterapeuta online) ou ilegal (o estudante de medicina que nunca entrou num hospital) confere prestígio social, uma almejada recompensa psicológica.
A eficácia da vacinação depende de sua abrangência demográfica, pois todos estaremos imunes se a ampla maioria for imunizada. Mas preferimos esquecer isso para tratar a vacinação como questão individual. Por meio desse truque, no lugar de vacinar, fazemos o que realmente queremos: linchar pessoas malvadas.