Descobri que meu vizinho de porta matou o Glauco

Alguns dias depois do crime, reconheci nos jornais o rosto de Cadu, que encontrava no elevador do prédio

Nós nos encontramos no elevador do prédio. Na breve subida, o simpático rapaz perguntou meu nome e o que eu fazia para viver. Apresentou-se com seu apelido, Cadu, que esqueci no minuto seguinte.

Retribuí a pergunta profissional, e ele me contou que começou os estudos em diversas áreas, mas, naquele momento, cursava gastronomia, fazendo estágio em um restaurante de hotel. Perguntei que tipo de comida pretendia cozinhar; respondeu ele que tinha uma queda pela culinária internacional.

Revelou, na curta viagem vertical, que vivia parcialmente lá com sua mãe e que, de fato, morava na Vila Madalena. Descobrimos que o destino de ambos era o décimo andar. Era meu vizinho de porta.

Despedimos-nos e entramos em nossos respectivos apartamentos. Minha primeira impressão foi que era aquele um cara sensível até por se dedicar à gastronomia. Podia ser uma ideia preconcebido a de que homens na cozinha tinham algo de delicado em sua presença. Um jovem de classe média comum com pais separados, tentando se encontrar profissionalmente, foi minha primeira impressão.

Trinta segundos depois que entrei em meu apartamento, o interfone tocou. Era Cadu, do outro lado da linha, me convidando para um café em sua residência. Achei um pouco além da conta e recusei a oferta educadamente, evitando uma intimidade desnecessária.

Meses depois, nos encontramos no elevador novamente. Cadu me perguntou se eu estava em um relacionamento. Eu disse que sim. Ele sugeriu então uma cerveja comigo e com meu namorado. Corrigi sua suposição, era uma namorada. Ele ficou sem graça, mas, mesmo assim, reforçou o convite. Parecia querer se aproximar para qualquer tipo de relação que se desencadeasse a partir dali.

Eu, no entanto, brequei, mais uma vez, sua aproximação. Minha personalidade introvertida se contrastava com a sua expansividade. Despedi-me e não pegamos mais nenhuma carona de elevador juntos.

Com sua mãe, cruzava no hall comum com maior frequência. Ela apresentava cabelos quase na altura da cintura, demonstrando ser crente em sua comunicação e maneira de se portar. Desejava-me bem, sempre com palavras que envolviam Deus; para ir com Ele, ficar com Ele e outras tantas variações que surgiam em suas frases feitas com pegada devota.

Não sabia nada, além disso, da senhora que morava do outro lado da parede. Ela parecia trabalhar à noite, talvez fosse enfermeira, eu ponderava, mas não tinha curiosidade ou sociabilidade suficientes para levar o papo além dos cumprimentos na porta de casa.

Certa vez, ouvi Cadu gritando com sua mãe de forma agressiva. O tom raivoso ecoava para além do apartamento deles. Temi que algo pudesse acontecer no apartamento vizinho e considerei chamar a polícia, mas a briga terminou antes de qualquer intervenção.

Com a mãe ausente durante as noites, Cadu se reunia com um ou mais amigos e o grupo fazia barulho a noite toda. Minha namorada pretendeu bater à porta ao lado em certa madrugada de festinha particular deles para pedir quietude. Eu a impedi, com medo da reação dele. Preferia não interferir e, assim, não ter que lidar com um problema futuro com o vizinho, além do fato de que, com certeza, não estaria sóbrio, o que poderia também gerar objeções imprevisíveis.

No dia em que eu estava saindo do apartamento para me mudar para a Alemanha, carregava meus pertences para a mudança para baixo do prédio. A porta dos vizinhos encontrava-se totalmente aberta.

No térreo, o zelador parecia atordoado. Ele me revelou que a mãe de Cadu pediu ajuda para controlar o filho dela e que essa não era a primeira vez que isso acontecia. Nervoso, ele contou também que ela tinha problemas psiquiátricos e tomava medicação controlada e preocupava-se com a proteção da senhora.

Quando retornei ao apartamento, a porta deles continuava escancarada, mas não se via nada além de uma parede do corredor interno. Pensei em entrar para conversar com Cadu, entender o que se passava e ajudar de alguma maneira, mas hesitei. Tinha ainda muitas caixas para carregar.

Parti para uma nova jornada de estudos na Alemanha. Meses depois, me deparei com a foto de um jovem estampando a capa de todas as plataformas digitais de jornais e revistas brasileiros. O rosto parecia familiar, mas eu não conseguia me lembrar de onde conhecia aquele cara. Era o assassino de Glauco, conhecido cartunista, que também atuava como líder de rituais com ayahuasca, e de seu filho.

Li tudo disponível sobre o caso. As reportagens diziam que o jovem estava agindo de forma estranha após consumir ayahuasca por diversas vezes, falando com plantas, acreditando que seu irmão era Jesus. Ele ameaçou o cartunista e seu filho com uma arma, querendo que eles convencessem sua mãe de tudo que ele acreditava ser verdade. O incidente culminou em morte.

Eu me forcei, tentando puxar aquela fisionomia do fundo do meu cérebro. Em minha investigação, descobri que havíamos estudado no mesmo colégio particular. Estivemos na mesma instituição de ensino, mas em épocas diferentes; ele sendo muitos anos mais novo do que eu. Não era ali que havíamos nos cruzado na vida, apesar de isso demonstrar que poderíamos ter nos encontrado em qualquer lugar na cidade de São Paulo.

Alguns dias se passaram quando meu cérebro despertou. Por detrás da sujeira de sua pele e barba na foto das manchetes, veio o rosto que revelaria a identidade daquela pessoa guardada em minha mente. Era meu vizinho de porta.

Não sabia que aquele dia que partia para a Alemanha seria um novo começo na minha vida ao mesmo tempo que se tornaria o começo do fim da vida dele. Eu também havia me desorientado com psicodélicos, incluindo uma internação em Paris após perder minha bolsa atlética nos Estados Unidos e não me formar para, ao invés, ir para a França conversar com Jacques Chirac sobre o futuro da humanidade em um delírio megalomaníaco.

Enquanto o episódio de Cadu o afundou, eu partia para Europa para o começo de uma carreira acadêmica em psicologia e neurociências para transformar os meus episódios em um foco produtivo, para entender meus processos internos, o que impulsionaria minha existência.

Aquela porta aberta ficou ali como um convite para alguma troca que nunca aconteceria e a convicção de que histórias parecidas podem ter fins bem distintos.

Joana Galvão

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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