Está mais válida do que nunca a explicação de um ex-ministro do STF para o abuso nas verbas do Orçamento
Certa vez em Brasília, ao entrevistar o então ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, perguntei por que parecia não haver remédio para o desvio de verbas do Orçamento. Ele deu um sorriso e me respondeu: “É muito simples, meu caro. Nossos políticos acreditam que o dinheiro público não tem dono. Não pertence a ninguém. Logo, pode ser embolsado por qualquer um. Daí o abuso”. Guardei para sempre a explicação do experiente ministro Marco Aurélio, recentemente aposentado do STF.
Quando li hoje no jornal O Globo reportagem sobre o esquema que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), montou para beneficiar seus aliados com verbas oriundas do orçamento secreto, lembrei-me da resposta irônica do ministro do STF. Lira faz o que bem entende com o dinheiro público. Segundo a reportagem, o superintendente da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em Alagoas, João José Pereira Filho, primo de Lira, é peça-chave na engrenagem. Conhecido no meio político como Joãozinho, ele foi indicado para o cargo por Arthur Lira, com a chancela do presidente Bolsonaro.
Joãozinho administra “um caixa turbinado por R$ 83,9 milhões de emendas do relator apadrinhadas por Lira”. E os repasses tiveram como destino, por exemplo, Barra de São Miguel, governada pelo pai do deputado do PP, que recebeu R$ 3,8 milhões. Arapiraca, do prefeito José Luciano Barbosa (MDB), também foi premiada com R$ 23,8 milhões. Barbosa é aliado de Lira, que foi à cidade com o primo Joãozinho para fazer a entrega simbólica do dinheiro. A prefeitura confirmou que os recursos foram “conseguidos em Brasília por Arthur Lira”. Arapiraca é uma das bases eleitorais de Lira. Lá ele foi o terceiro mais votado nas eleições de 2018, com 7.072 votos.
Dinheiro público “não tem dono” e, como se vê, dá um bom empurrão nas campanhas políticas de Arthur Lira. O “carimbo” de Lira aparece em documentos do Ministério do Desenvolvimento Regional, em que ele consta como autor das indicações. Não há nesse tipo de emenda a possibilidade de visualizar o autor e o destinatário nos portais públicos de transparência. No início do mês, diante da denúncia de uso dessa verba para comprar apoio à PEC dos Precatórios, o STF determinou a suspensão da execução do orçamento secreto, além da criação de mecanismos de transparência para a execução dos recursos.
Lira ficou contrariado com a decisão do STF e afirmou que é uma intromissão do Judiciário nas atribuições do Legislativo. Ou seja, considera que é seu direito utilizar verbas públicas para garantir suas eleições. Marco Aurélio, portanto, acertou na mosca. Políticos com o perfil patrimonialista de Arthur Lira creem que podem fazer o que bem entendem com os recursos da União. Dinheiro do povo não pertence a ninguém. E essa é a opinião de ampla maioria no Congresso. Tanto assim que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, quer editar um ato conjunto da Câmara e do Senado que mantenha as emendas, mas com mecanismos que assegurem o mínimo de transparência à destinação dos recursos.
“Temos que identificar como convergir a necessidade de executar o Orçamento e, ao mesmo tempo, ter a máxima transparência, que é a razão de ser da decisão do Supremo. Nossa intenção é o cumprimento da decisão (do STF) e apresentar um modelo mais inovador e transparente”, explicou o presidente do Senado, após encontro com o presidente do Supremo, Luiz Fux.
A posição sinuosa de Rodrigo Pacheco lembra a famosa recomendação de Getúlio Vargas: “Vamos deixar como está pra ver como é que fica”. A seu ver, não há motivo para coibir o abuso na destinação das emendas do relator. Desde que haja transparência, nada deve impedir o uso político do dinheiro público. Portanto, a engrenagem de Joãozinho continuará a funcionar e bem azeitada.