De repente, isso deixou de ser um simples cumprimento. Veio da verbalização de um desejo, sim, de uma atenção também, mas, de tão usual, funciona muitas vezes como um alô, olá, uma pergunta de “tudo bem?” que nem espera por resposta… Como aquela saudação curitibana “passa lá em casa”, sem dizer o endereço. Quase faz lembrar da entonação de outro “cuide-se!”, o ameaçador.
Cuide-se, nos últimos anos, carregou o peso de um apelo sufocado de apreensão, pânico, das incertezas tateadas na escuridão dos pesadelos, dos isolamentos e dos assombros noturnos, invisíveis, silenciosos e nefastos. Mas já vinha também com um pouco mais de intensidade sincera. Afinal, a humanidade encontrou um motivo concreto e fatal para perseguir esse aconselhamento.
Agora, o pedido de autocuidado que é sempre necessário e que precisa estar vigilante às constantes recaídas das frustrações e ansiedades egóicas é o que nos remete à autoestima, seja em caráter preventivo ou o que remedia. De preferência, que seja descartado na redundância e que chegue ao endereço já sentindo-se em casa, naturalizado no peito de quem segue instintiva e intuitivamente essa recomendação. De um jeito ou de outro, esse apelo precisa ser constantemente dito, manifestado, regado, nutrido, ressaltado para que tudo em volta se materialize em reflexos de autoamor. Se puder vir acompanhado de um “bem”, o efeito é mais veloz e será melhor recebido. Cuide-se bem!
Que brote contagiante nas despedidas pessoais e coletivas, no final dos encontros casuais ou mais planejados, até que se concretize em hino retumbante da nossa vontade, da preocupação amiga e sincera com a prosperidade alheia. Que seja um vício nas mensagens escritas, na comunicação instantânea dos aplicativos de bate-papo, nas conversas telefônicas, telepáticas, teleguiadas, nas tele chamadas e nas plataformas utilizadas para reuniões à distância.
É preciso se embriagar desses desejos. Sem se esquecer de exercitar e aprimorar cotidianamente tal recomendação diante do espelho. Cuide-se, você também, criatura divina! Em primeiro lugar, em primeira pessoa.
Resgatei talvez – quem sabe? – uma última carta escrita do bunker porque me vi diante das mesmas sensações que fizeram com que, bem no início do isolamento social, provocado por esta pandemia e todas as suas metamorfoses e desdobramentos, que continuam nos enclausurando e assombrando, eu sentisse a necessidade de compartilhar impressões, vivências e elucubrações que suspeitava serem comuns às pessoas na mesma situação, ou seja, a humanidade. Humanidade no sentido social, político e biológico, mas também pela humanidade que perseguimos como um motor a nos impulsionar nas diversas interações e na evolução particular.
A cada saída do casulo, as ilusões e desilusões com o mundo persistem. Mudanças ocorreram e foram introduzidas à rotina, perdas inestimáveis se deram, mazelas foram potencializadas, a criatividade e o poder de superação venceram ou aprimoraram diversas condições e a realidade que fervilhava em uma panela de pressão confinada veio para fora. A bem da verdade, na vida de milhares e milhares, em proporção geométrica, pouca coisa ou pelo mínimo período de tempo mudou.
A cada vez que abro a porta de casa e volto à imersão daquele início de uma jornada íntima universal, pergunto: afinal, quando essa pessoa, com suas novas ideias e sentimentos, encarados ou descobertos na temporada dos distanciamentos, será capaz de ganhar as ruas de fato? A sensação é de um choque esquizofrênico ainda e as surpresas e os conflitos entre as personalidades e reações de antes e de agora são testes esfregados na cara a todo momento. Nem parece certo exigir ou esperar grandes transformações lá fora, dos outros, quando o maior e mais promissor encontro não foi assimilado por dentro.
Os avanços civilizatórios ou evoluções imateriais que a gente tanto quer ver na realidade à nossa volta se iniciam em um único ponto de luz, que se conecta e se integra no gigantesco universo. Como nas ligações em série dos pisca-pisca do Natal que se aproxima. Uma só que falhe e perca seu brilho, sua energia, compromete, aos poucos e em cadeia, a decoração inteira.
Dentro do bunker ou fora dele, desejo uma cidade e um mundo repletos de pessoas que se amam e que resplandecem esse brilho no olhar, no sorriso, nas palavras, nos gestos e no compromisso semeado a todo momento e à simples interação em fazer valer, um dia, sua centelha de responsabilidade na edificação de um lugar melhor de se viver… Para todos viverem assim. Portanto, cuide-se e cuide-se bem! A solidariedade e a empatia vão certamente florescer desse amor que só vê sentido em se multiplicar e expandir-se.