Fisgada

Óleo essencial de lavanda. A recomendação veio de uma amiga, que, ao que tudo indica, já havia passado pelas mesmas chagas… As mesmas dores, os mesmos receios e dúvidas. Embora elas intuíssem que compartilhavam histórias similares e sentissem a necessidade de apoiarem-se nessa caminhada longa e caprichosamente repleta de percalços, a delicadeza do assunto não permitia que avançassem para além das suposições dessa cumplicidade quieta. Se estivesse enlouquecendo, que ninguém mais se preocupasse com isso. E, nem com as melhores intenções do mundo, avançassem igualmente sobre a fronteira da sua descompensada intimidade.

Mas uma dica aqui, uma frase bem dita ali e inúmeras mentalizações, emanações de desejos de força e de sucesso na empreitada eram trocados entre ambas como garantia de que a realização da primeira representasse a esperança na concretização dos sonhos da segunda e, assim, prosseguiam, numa espécie de escambo otimista.

A amiga disse à Helena para massagear a região do chacra cardíaco com óleo essencial de lavanda sempre que a fisgada no peito, palpitações ou o aquecimento nessa região viessem acompanhados de dor muscular, de compressão ou de contração na pele sobre o coração. Tinha a ver com a transmutação das reações físicas, emocionais e espirituais. No início, tão logo descartou, por meio de exames e laudos médicos, as possibilidades de complicações orgânicas, de problemas à saúde do corpo físico ou de algum mau funcionamento desse seu motor, ela naturalizava aqueles incômodos como uma marca da conexão energética recém-descoberta, que se manifestava, entre outras coisas também nessa “sofrência”, no melhor estilo dos clássicos sertanejos que tocam nas rádios do interior. Tinha certa beleza e certo apego no reconhecimento daquelas vibrações a lhe fazer companhia.

Com o tempo e o desgaste das expectativas, pelo freio de mão puxado da redução das ansiedades, ela se determinou a livrar-se de quaisquer sofrimentos e desapegar-se de dores e dúvidas. “Não é certo encarcerar-se, atrasar-se; não é certo naturalizar qualquer dor que seja ou admitir padecimentos”, refletiu e logo se determinou a efetuar uma guinada de 180 graus no foco das suas ideias. Não 360, pois a levaria ao mesmo ponto de partida. Arejou a mente, os pensamentos e as relações. Sabia que qualquer distanciamento não a levaria muito longe de si mesma, mas justamente para encontrar-se é que necessitava desprender-se de algumas amarras e âncoras de baixas vibrações. Sua plenitude e espontaneidade se deixaram sufocar por desejos e ausências que lhe roubavam o sono e a sanidade emocional.

Respirar era essencial. A fragrância tinha o poder de acalmar sua mente e devolver-lhe a confiança nos propósitos daquela jornada. Sabia que era o certo a se fazer. As palavras da professora de Química do antigo segundo grau, que se fez amiga dos adolescentes e, sempre que podia, transmitia a eles mensagens espiritualizadas e carregadas de simbolismos, por mais contraditórias que lhe parecessem, voltavam a sua cabeça, como se, a seu tempo, uma a uma, as peças de um quebra-cabeças da existência humana fossem sendo assentadas no tabuleiro daquele jogo. “O que é da gente, vem pra gente!”, dizia a mestra. Num insight, Helena percebeu que não foi por acaso que aquilo lhe havia sido dito há mais de três décadas. Foi para que ela guardasse aquelas palavras na lembrança – arquivasse -, até o dia em que elas realmente finalmente fizessem sentido. Mesmo se pegando a repetir a frase em conselhos para outras pessoas, nas mais diversas situações ao longo dos anos, só agora é que era chegada a hora de entender, confiar e de se apoiar naquela meia dúzia de palavras… Os grãozinhos!

Nas alternâncias de dores e de humores, percebeu que todo o esforço nem era tão gigantesco assim, como a tristeza lhe testava a cada período… Estava apenas semeando grãos. Em velocidade incompatível com as urgências e carências deste plano físico. Aquela fisgada no peito tem um endereço, tem um rosto, tem um nome e se espelha em outro peito, distante… Que vibra na mesma intensidade, sem sequer tomar ciência nem erguer questionamentos.

Ela mesma acredita que a dinâmica incandescente e progressiva é que fala alto e a faz crer no que, embora assuste e venha apunhalar sua tranquilidade, desenha um cenário melhor que o que a realidade sempre lhe apresentou para viver. Essa fisgada tem sua hora, marcas, digitais e a insensatez de ambos. É compartilhada nas profundezas das suas insatisfações e negada mesmo nas certezas e magias do encontro.

Ah, e que Lua é essa, que tanto convida e pouco esclarece!? Para que serve ser dotada de tamanha luminosidade se vem envolta em mistérios que aquietam e ocultam aqueles sentimentos? As músicas falam com ela. A busca de uma desatenção, de uma fuga para a mudança de pensamento, seja qual for, a fim de que se abra às novas possibilidades, é sempre uma tarefa inútil. Elas surgem e cantam promessas paralisantes. Quando persegue uma distração, a música grita potencializar e parece querer lhe levar a experimentar o extremo das emoções.

Helena ouve, compreende o recado, que lhe devolve, assim como a fisgada, a um endereço, um nome, um rosto e até a um inédito e recente sorriso. Ela sente-se presa a uma armadilha temporal, em meio ao dilema do “Dia da Marmota”, do filme “O Feitiço do Tempo”, que viu numa sessão da tarde há alguns anos. Volta e volta sempre ao mesmo ponto, numa tentativa desesperada, por vezes infrutífera e outras, estimulante, de sair desse vórtice com o menor prejuízo possível ao equilíbrio de suas emoções cambaleantes e conflituosas, que transitam entre a tristeza que o ego exprime diante das impossibilidades e as alegrias da evolução que frutificará da assimilação de um afeto incondicional.

Ela quer compartilhar o que aprendeu na jornada. Mas será essa bagagem suficiente? O que esse aprisionamento lhe sinaliza é que talvez ainda não esteja pronta ou segura para colocar em prática o conjunto dessas lições. Não da forma como quer, merece viver, entregar e fazer germinar um novo amanhã. Como dizia a professora, esse novo está lá, bem guardado, na distância das passadas utópicas que posicionam cada um a avançar ou retroceder livremente nessa caminhada. Levou tais pensamentos para o travesseiro e mergulhou em mais uma jornada de projeções e de aprendizados inconscientes, inebriada pelo aroma da lavanda na sua pele.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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