Sem espaço para a paixão e o flerte?

Autora Mary Gaitskill problematizou corajosamente o movimento #MeToo e traz discussão para livro

Talvez você tenha ouvido falar da contista e ensaísta Mary Gaitskill porque, em 1988, ela causou nos Estados Unidos ao escrever sobre mulheres envolvidas com drogas, sadomasoquismo e trabalho sexual. O livro em questão se chama “Mau Comportamento” (e acaba de ser relançado pela editora Fósforo, aguardem resenha!) e foi considerado um divisor de águas na maneira como a sexualidade feminina é tratada na literatura. O conto que deu nome à obra inspirou, em 2002, o filme “A Secretária”, com Maggie Gyllenhaal.

Talvez você se lembre do nome Gaitskill porque, mais recentemente, em 2019, ela foi muito corajosa ao problematizar o movimento #MeToo. Incomodada com o que chamou, em uma entrevista para “O Globo”, de “ortodoxia sexual, sem espaço para a paixão e o flerte”, seu desejo, sobretudo como contista, não era defender nenhum suposto abusador, mas sim dar alguma chance para as histórias, deixando que elas tivessem nuances, ambiguidades e zonas cinzentas.

Foi dessa fase que nasceu o incômodo, genial, complexo, irritante –e mega disparador de gatilhos– conto “Isso é Prazer”, lançado no final do ano passado, também pela Fósforo. Trata-se de uma edição bem interessante porque, na sequência, podemos ler o ensaio “A dificuldade de seguir as regras”, escrito em 1994, sobre abusos sofridos e causados e como a autora teve que aprender a entendê-los e a se posicionar diante deles. Ela é uma feminista angustiada com o fato de algumas mulheres se colocarem rapidamente, sem grandes questionamentos, no lugar de vítimas –o que é bem polêmico.

Voltemos ao conto. Quin é um editor bem-sucedido, charmoso, elegante, divertido, aparentemente inofensivo (baixinho) e viciado em flertar. Ou, melhor dizendo, viciado em abençoar as mulheres à sua volta com tamanha atenção, devoção, presença e perspicácia. Um verdadeiro deflagrador de “momentos mágicos” (o personagem me lembrou tantas histórias pregressas e íntimas que estou até agora tentando separar, em vão, bons afetos de ódios canceláveis –o que significa, a meu ver, que estamos diante da mais afiada literatura).

Para orgulho próprio, o que denuncia seu conservadorismo, Quin não chega a trair a esposa sexualmente, todavia, com a desculpa de se sentir vivo, o editor dedica seus dias a cativar e manter um séquito de jovenzinhas e senhoras que provoca, aconselha, ajuda, salva da solidão, lota de mensagens, leva para almoçar, para comprar roupas e, em raros momentos, as toma de surpresa com uma mão boba e microagressões físicas e psicológicas. Até que muitas dessas se unem, revoltadas, assinam uma carta e ele perde tudo: emprego, prestígio e o respeito da esposa.

Margot, também editora e uma das melhores amigas de Quin (e claramente um alter ego da autora), rivaliza como protagonista, dividindo seus relatos com os do editor acusado de assédio e consigo mesma, ora irritada com tantas mulheres que se beneficiaram da generosidade e dos bons contatos do poderoso, excêntrico e badalado descobridor de novos talentos (e colocando o amigo em um lugar fragilizado, “ele é só um bobo”, ao mesmo tempo que retira essas acusadoras de um lugar que considera fraco, “elas não poderiam ter dito somente que não queriam?”), ora sentindo um profundo, verdadeiro –e confuso– asco por ter sido uma das pessoas que se deixaram seduzir por um homem manipulador e obcecado por si mesmo: “eu senti uma fascinação relutante”.

“Por que você quer ser amiga de um cara desse?” é a pergunta que fazem a Margot, a Mary, a mim. Que todas nós nos fazemos. E eu ainda me pego, vez ou outra, lembrando com um misto de saudade e aspirações assassinas de muitos deles.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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