O paraíso tem cheirinho de ar-condicionado velho
Lá em casa o único ar-condicionado ficava no quarto dos meus pais. Nos dias quentes de verão, ganhávamos o direito de dormir lá, os quatro irmãos, amontoados em colchões no chão. Gostava de abraçar aquele gigante barulhento e enfiar o nariz dentro das suas persianas. Não me esqueço do cheirinho delicioso que vinha das suas profundezas geladas. Talvez fosse mofo.
Guardo até hoje profunda estima pelo aparelho. Mais que isso: devoção. O ar-condicionado ocupa, pra mim, o Olimpo dos eletrodomésticos, o oposto da impressora, que mora no Hades dos eletrodomésticos, ao lado das caixinhas bluetooth. O ar-condicionado, não: fica do ladinho de Zeus. Não nega fogo. Pinga, geme, agoniza, mas não morre.
Um ar-condicionado pode durar 30 anos, o que, em anos de eletrodoméstico, equivale a 300. Tenho um guerreiro aqui que já estava no apartamento quando eu cheguei. Deve ter a minha idade. Assim como eu, reclama pra trabalhar, faz um barulho danado, gasta mais energia do que precisa, mas está vivinho, com uma saúde de ferro —tirando o pigarro e a coriza.
Gosto especialmente daquilo que ele tem de mais jurássico: seu barulho, nos dias bons semelhante ao de um navio, nos dias ruins lembra uma traineira. Imagino que esse fosse o barulho que ouvíamos, antes de nascer, no calor do útero. Sua música me transporta de volta pro saco gestacional, quando a vida consistia em escutar uma máquina trabalhando. Sair de casa, num dia quente, é um parto.
No quarto colocamos um Split –seu silêncio me incomoda. Não se fazem mais barulhos de ar-condicionado como antigamente.
“Um casamento é uma aliança entre um homem que não consegue dormir com a janela fechada e uma mulher que não consegue dormir com a janela aberta”, disse Bernard Shaw, no século passado. A frase, claro, precisa ser atualizada. “Um casamento heterossexual é uma aliança entre uma mulher alérgica a ar-condicionado e um homem que só dorme com o termostato no 15.”