Em nome de combater uma violação moral, incorremos num punhado de outras
A grande surpresa na crise da Ucrânia foram a rapidez e a firmeza com que a comunidade internacional respondeu à invasão russa. Até então, o presidente Vladimir Putin vinha explorando com competência as divisões entre americanos e europeus. A mudança decorre, acredito, de uma troca de “framing” (enquadramento).
Enquanto se discutia a conveniência geopolítica de a Ucrânia integrar a Otan, a questão era tratada de forma pragmática, com abertura para divergências e a possibilidade de matizes. Mas, depois que Putin decidiu recorrer às armas para iniciar uma guerra de agressão contra um país soberano, provocando a morte de civis inocentes, a invasão passou a ser vista como uma violação moral. E isso faz toda a diferença.
A grande vantagem de colocar questões sob o enquadramento moral é que fazê-lo catalisa as reações. Pessoas (e países) têm opiniões sobre tudo. Especialmente em tempos de redes sociais, é fácil fazer que as externem. Um pouco mais difícil é fazer com que tomem atitudes concretas para promover suas preferências. Mas, para fazer com que incorram em custos pessoais para impor sua visão, aí é preciso que o problema seja descrito em termos morais. Eu aceito algum ônus para punir um assassino ou um estuprador, mas não para castigar alguém que violou uma norma sem conteúdo moral, uma regra de etiqueta, por exemplo.
E a grande desvantagem de colocar questões sob o enquadramento moral é que, ao fazê-lo, abrimos as portas para a desmedida e até o fanatismo. A moral é essencialista e não trabalha bem com nuances. Se foi a Rússia que agrediu injustificadamente a Ucrânia, então torna-se legítimo punir russos, pouco importando se têm ou não agência na guerra, se apoiam Putin ou se opõem a ele. O paradoxo chega fácil: em nome de combater uma violação moral, incorremos num punhado de outras.
Quando até o estrogonofe é cancelado, fica claro que há algo de irracional no ar.