Lei Paulo Gustavo abre precedente para esvaziar o pouco que restou das regras de disciplina fiscal
Foram muitos os posicionamentos contrários ao veto presidencial, na semana passada, ao projeto de lei complementar 73/2021, conhecido como Lei Paulo Gustavo, em homenagem ao ator que morreu em 2021 em decorrência de complicações da Covid-19.
A lei estabelece apoio de R$ 3,8 bilhões a ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas em decorrência dos efeitos econômicos e sociais da pandemia. A manifestação contou com depoimentos da classe artística, como da atriz Dira Paes, e da própria mãe do ator, que ficou imortalizada em um dos principais personagens interpretado por Paulo Gustavo, a irreverente Dona Hermínia.
Nenhuma homenagem será suficiente para compensar a falta que o ator faz para a sua família, para seus amigos e para o enorme público que o admira (do qual faço parte), mas a comoção gerada em torno da lei que leva o nome de Paulo Gustavo não a exime de críticas e contradições inerentes ao direcionamento de recursos públicos ao setor cultural tal qual estabelecido por ela.
Pelo argumento de muitos que apoiam essa lei, é meritório destinar recursos à cultura, já que esse foi o setor mais adversamente afetado pelas políticas de distanciamento social. É verdade que o setor sofreu com a pandemia. Segundo estudo do Ipea, divulgado ao fim de janeiro deste ano, o setor cultural em sua forma mais ampla (incluindo empregos em ocupações ou atividades relacionadas à cultura) perdeu 827 mil empregos do quarto trimestre de 2019 até o terceiro trimestre de 2020, passando a empregar apenas 4,6 milhões de trabalhadores no período mais agudo da crise econômica.
Mas a perda da cultura não foi maior que a de demais setores da economia: em igual período de tempo, o número de pessoas empregadas em ocupações e atividades não culturais caiu de 89 milhões para 77 milhões, uma queda de 11 milhões de empregos, aproximadamente equivalente à perda proporcional de empregos no setor cultural (12% versus 15%). Considerando a retomada da atividade e os dados mais recentes utilizados no estudo do Ipea, a recomposição do emprego também se deu de forma semelhante entre os setores culturais e não culturais, e desde o terceiro trimestre de 2020 até o segundo semestre de 2021 os empregos no setor cultural se recuperaram em 8,8%, enquanto a recuperação no setor não cultural foi de 7%.
Pelos números, não procede o argumento de que o setor cultural sofreu mais que os demais setores com a pandemia. Assim como também não é válido dizer que o setor cultural é o que gera maiores externalidades na recuperação pós-Covid, tendo em vista que investimentos em saúde e educação ou o direcionamento de recursos em prol de políticas ambientais e de investimentos em pesquisa e inovação tecnológica também geram benefícios para a sociedade.
Mas pior que a duvidosa necessidade de direcionamento de recursos à cultura no pós-pandemia é a forma por meio da qual a lei foi encaminhada, violando, mais uma vez, as nossas já combalidas regras fiscais. A nova lei, conforme consta no texto do veto, cria despesa que está sujeita ao teto de gastos, e sua implementação depende de redução equivalente de demais despesas, algo que a classe política se recusa a fazer.
Na esteira da flexibilização do teto de gastos que ocorreu de forma casuística no ano passado em razão dos precatórios, ficam dadas as condições para nova flexibilização.
A proposta também altera a Lei de Responsabilidade Fiscal, para que as transferências federais aos demais entes da Federação para enfrentamento das consequências sociais e econômicas no setor cultural decorrentes de calamidades públicas ou pandemias não sejam contabilizadas na meta de resultado primário. De exceção em exceção, a Lei de Responsabilidade Fiscal deixa de ser regra.
No seu desenho, a lei estabelece critérios que não estão alinhados com a nova configuração da indústria de entretenimento no pós-pandemia. Por exemplo, a alocação de cerca de meio bilhão de reais (15% dos R$ 2,7 bilhões direcionados ao setor audiovisual) para reformas e manutenção das salas de cinema (públicas ou privadas) ignora que o streaming mudou a forma como as pessoas consomem filmes.
O lobby da cultura não é diferente do lobby dos caminhoneiros pelo alívio na conta diesel, do lobby dos funcionários público pelo aumento de salários, nem do lobby dos 17 setores que recebem isenção de impostos na folha de pagamento. A Lei Paulo Gustavo abre precedente perigoso para o esvaziamento do pouco que restou das regras de disciplina fiscal e mais uma vez impede planejamento integrado e avaliação consolidada do uso eficiente de recursos públicos escassos.