Ao misturar religião e política, a primeira-dama tenta negar o óbvio: seu marido é símbolo da injustiça e do ódio
Ao voltar para casa no início da semana, vi um adesivo verde-amarelo no vidro de trás de um carro de preço médio, longe de ser luxuoso. Aproximei-me no sinal e li: “Deus, Pátria, Família e Liberdade”. Fiquei espantado com a novidade no trânsito. A frase, no estilo da antiga TFP (Tradição, Família e Propriedade), identifica o motorista com o famigerado Jair Bolsonaro. No domingo, uma motociata em apoio ao ex-capitão passou pela Conde de Bonfim, na Tijuca, entre gritos de protesto (Fora Bolsonaro!) e também de apoio. No andar de baixo do meu prédio, uma vizinha berrou: “Deus está com Bolsonaro!”. Não sou de bater-boca, mas rebati na hora: “Não seja herege. Deus não vota!”. E fez-se silêncio.
Fiz essa introdução porque me espanta a desenvoltura com que a primeira-dama Michelle Bolsonaro anda por aí com seu discurso messiânico — dizem que é pentecostal — misturando política com religião. Tudo começou no lançamento da candidatura do marido, no Maracanãzinho, quando ela afirmou, entre dezenas de améns e exaltações ao Senhor, que Bolsonaro “é o escolhido de Deus para governar o Brasil”.
Segundo ela,“Deus tem promessas para o Brasil e todas as promessas irão se cumprir. Enquanto existir esse joelhinho aqui, as promessas de Deus irão se cumprir”. Em meio às demonstrações de fé e religiosidade, Michelle só não nos revelou quando se deu sua conversa com Deus a respeito da política brasileira. E muito menos forneceu maiores detalhes sobre a declaração de voto do todo-poderoso. Vai ver que ela está ouvindo vozes por aí.
Nos últimos dias Michelle prosseguiu com sua pregação radical e enviezada. Numa madrugada, levou grupo de amigos e amigas para benzer o Palácio do Planalto. E no domingo, diante culto evangélico em Belo Horizonte, afirmou que antes do governo Bolsonaro, o Planalto era “consagrado a demônios”. Disse ela: “Podem me chamar de fanática, podem me chamar de louca. Eu vou continuar louvando nosso Deus. Vou continuar orando (…) porque, por muitos anos, por muito tempo, aquele lugar foi consagrado a demônios. Planalto consagrado a demônios. E, hoje, consagrado ao Senhor Jesus”.
Cá entre nós, ou Michelle Bolsonaro é ingênua ou está enlouquecida mesmo. Seu discurso bate de frente com a realidade e com a própria fé cristã. Como sabem, mesmo os que não acreditam em Deus, uma das peças mais belas no Novo Testamento é o Sermão das Montanhas de Jesus Cristo. Lá está dito para quem tem ouvidos para ouvir: “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia;
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”.
Portanto, um imenso fosso separa as ações (ou a inação) de Bolsonaro do que está escrito no Evangelho. Bolsonaro prega o ódio e é impiedoso. Jamais mostrou um pingo de solidariedade aos milhões de brasileiros e brasileiras que têm fome e sede de justiça. Jamais pisou num hospital para consolar doentes acometidos pela Covid-19. Em seu mandato, jamais pisou numa comunidade ou num bairro de periferia. Bolsonaro é o antipovo. Não tem nada a ver com a justiça e a liberdade. Sua visão de família é misógina e ultraconservadora. Seu patriotismo é o do último refúgio dos canalhas, como disse Samuel Johnson.
Ontem, Michelle voltou a atacar o ex-presidente Lula por ter participado de cerimônia de uma religião de matriz africana. Compartilhou o vídeo e comentou: “Isso pode, né! Eu falar de Deus, não!”. Novamente, mostrou que anda muito confusa. Ninguém criticou a primeira-dama por “falar de Deus”. Inaceitável é o fato de ela atribuir ao todo-poderoso preferência pela candidatura de seu inominável marido. Mas, desta vez, ela recebeu resposta à altura da socióloga Rosângela da Silva, a Janja, mulher do ex-presidente Lula. Nas redes sociais, Janja lembrou a Michelle que “Deus é sinônimo de amor, compaixão e, sobretudo, respeito”. A Frente Inter-Religiosa Dom Paulo Evaristo Arns também pediu que Michelle “se retrate dentro dos princípios do amor ao próximo que afirma professar”.
Ao misturar alhos com bugalhos e falar de visões e demônios, Michelle Bolsonaro parece mesmo fora de si. Fanática ou louca, como ela mesmo diz. Fico aqui pensando em Lady Macbeth, quando viu o reinado do marido chegar ao fim. Vendo fantasmas dos inimigos mortos pelo usurpador, ela enlouqueceu. Mas eu não desejo o mesmo final trágico para Michelle. Espero, sinceramente, que ela tenha saúde para acompanhar a tarefa árdua de reconstruir o Brasil após o terrível mandato do seu marido. O ex-presidente Lula terá um grande desafio pela frente. Repôr o Brasil nos eixos vai exigir energia e tempo. Amém!