Presença feminina é sinal de vida na campanha

O papel das mulheres foi um tema de destaque no debate entre os candidatos. Isso me alegra. Nas eleições no Chile e na Colômbia, o assunto surgiu no contexto do programa da esquerda, que venceu.

Aqui no Brasil, além de sua inserção clássica na esquerda, a dignidade e a importância das mulheres foram defendidas por uma candidata de centro e outra de centro-direita.

Isso me leva a considerar que as coisas foram tão longe que hoje não se pode associar a sociedade patriarcal ao capitalismo. A abertura para o imenso potencial humano relegado pelo machismo pode enriquecer o próprio sistema.

As mulheres são a maioria do eleitorado. Mas foi uma pergunta da jornalista Vera Magalhães que desfechou o debate, repercutindo até no exterior. Bolsonaro respondeu com agressões.

O fato de o estopim ter vindo do jornalismo não me é estranho. Faz muito tempo que as mulheres têm papel decisivo na nossa profissão.

Digo por experiência pessoal. Trabalho há oito anos na televisão. Fui contratado por uma diretora geral da GloboNews. Ao longo de todos os anos, o departamento a que me vinculo foi sempre dirigido por mulheres.

Tive a sorte de ser pai de duas meninas. A primogênita guarda até hoje as fotos das primeiras manifestações de mulheres de que participou ainda menina, na década de 1980, quando fui candidato. A mais nova resolveu se aventurar num esporte, o surfe de ondas grandes, dominado pelos homens. Aos 14 anos, ela percebeu que as meninas ficavam na praia, enquanto os meninos surfavam. E perguntou:

— Tem de ser assim?

O Brasil já estava maduro para que o tema fosse para o topo da agenda. Bolsonaro percebe isso e reage com desespero. Tem mais medo da ascensão das mulheres que do próprio socialismo. Daí seu apego ao que chama de guerra cultural.

Essa não é a única novidade que pode movimentar a campanha. A questão ambiental, tão presente nas eleições americanas e europeias, não consegue abrir caminho. Um dos candidatos a mencionou com destaque, mas para afirmar apenas a importância do mercado. Há coisas que o mercado não pode fazer, como combater o desmatamento ilegal, retirar garimpeiros das áreas indígenas. São ações típicas de Estado e, ainda assim, a prática mostrou que elas precisam também de apoio social.

Na campanha, quase não se fala do racismo, tão presente em nossa vida cotidiana. Pouco se pergunta também. Nem de longe tem o peso que teve nas eleições americanas. Mas lá matam negros asfixiados, diria alguém. Mas no Brasil se mata do mesmo jeito, às vezes até com requintes, como explodir a bomba de gás no porta-malas da viatura, com um preso lá dentro.

Concordo com todos os que dizem que o problema mais urgente é a fome. No entanto não apenas o combate à fome, ao racismo, à misoginia, à destruição ambiental —tudo, enfim, poderia ser visto sob um novo ângulo: a articulação entre Estado, mercado e sociedade.

De um modo geral, uma campanha se faz com propostas e críticas aos adversários numa dosagem equilibrada. Bolsonaro deixa muitos flancos. Além de sua atuação terrível na pandemia, há todos os erros de seu governo e também os tropeços da vida pessoal. A família negociou 107 imóveis em 30 anos, pelo menos 51 com dinheiro vivo. Mais que uma família, é uma agência imobiliária.

Mas os anos sombrios podem ficar para trás, e seria muito interessante olhar um pouco para o mundo, em busca das ideias necessárias para a reconstrução.

Um país com maioria de mulheres, rico em recursos naturais, com chances de superar o racismo e de iniciar uma experiência de que nossos filhos e netos possam se orgulhar, é algo que está no horizonte das nossas possibilidades.

Não podemos deixar que Bolsonaro defina nosso padrão de felicidade, limitando-o apenas à sua derrota. Existe toda uma vida pela frente, quando ele se tornar apenas uma lembrança amarga na História.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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