É semana do aniversário de São Paulo, mas quem vai ganhar a crônica é o Rio de Janeiro.
Morei no Rio por uns oito meses quando tinha 29 anos. Por conta das crises de pânico intensas que começaram naquele período, escrevi os mais simplórios e terríveis textos sobre a cidade. Insistia em clichês mentirosos e outras platitudes: as pessoas te chamam para eventos, mas no fundo não querem que você vá; a panelinha no trabalho é muito fechada e você se sente um E.T.; é muito quente; é muito violento; é tudo “pra fora”; e a mais arrogante e paulistana de todas: o serviço é muito ruim.
Não era nada disso. A primeira vez que vi um cara todo molhado e de sunga dentro de um banco, eu senti um negócio no estômago que chamei de nojo, mas era vontade de me ajoelhar e secar as coxas do rapaz com meu cabelo. E, para chegar a essa conclusão, eu precisei de 15 anos de terapia. Passei mais de uma década chamando minha libido desenfreada de fobia social.
Na minha primeira semana trabalhando na Globo, fiz um comentário na sala de roteiro: “O filho neurótico prefere pensar que a mãe é virgem”. Nunca vou esquecer a cara das pessoas. Primeiro porque o protagonista era um jovem surfista sarado, bronzeado e pegador. Eu via 56 doenças psíquicas nele, mas isso certamente era um problema meu. Depois porque a mãe do cara tinha a idade de algumas roteiristas que estavam ali trabalhando comigo. Elas queriam me matar. Tentei explicar que esse era só meu humor, mas não riram.
Aos poucos fui gostando tanto do espírito cômico do carioca que nunca mais montei equipes de roteiro que não fossem 90% formadas por eles. Dediquei boa parte da minha labuta amorosa a só me apaixonar por cariocas, de todos os gêneros e idades. Me casei com um carioca. Minha filha fala com sotaque carioca e ama desesperadamente o Rio. Pensem que eu saí de lá dizendo “tchau, eu te odeio” quando, na verdade, eu nunca mais sairia daquela cidade. Nem ela de mim. E isso dá raiva mesmo.
Um dia você acorda, se olha no espelho e vê uma moça descoladinha que vai conquistar o universo. No mesmo dia, você se muda para o Rio de Janeiro e, ainda não são nem sete da noite, se olha no espelho novamente e vê a farsa, a coitada, a mais uma, o embuste, a caipira, a medrosa, a mimada, a travada, a inexperiente, a sem fôlego, a sem músculo, a sem cor, a sem maldade, a sem graça. O Rio come um tanto do que você acreditava ser, cospe um tanto do que você achava que seria. E quando você está em carne viva lhe diz, quase fofinho, que lhe faria bem tomar um sol.
Eu fui fantasiada de mulher para o Rio. Voltei pelada e cagada, mas era ali que eu estava começando a me tornar adulta. O Rio de Janeiro te cria para o mundo.
Eu tinha raiva daquelas pessoas na praia em plena terça-feira. Duas da tarde e a praia cheia. Quando passava de carro pela avenida, na Zona Sul, virava o rosto e, em vez de encarar o mar, eu olhava para as janelas dos prédios. Eu buscava algo de familiar ali. Talvez uma faxineira limpando, quase caindo do parapeito, pra deixar do jeito que a patroa gosta. Isso lembraria o pior de São Paulo e então eu pensaria “estou em casa”. Mas a areia lotada de desaforados me insultava. Em São Paulo é que se trabalha de verdade!
Tudo mentira. Pelo menos na minha profissão, as infinitas reuniões são sempre para tentar copiar um pouco do que é feito no Rio. Vivemos repetindo frases como: “Então, porque o Porta dos Fundos…”; “Então, porque a Tatá Werneck…”; “Então, porque lá na Globo…”; “Então, porque na Conspiração…”.
A primeira vez no Rio, com 17 anos, meus olhos sentiram uma espécie de danação. Senti que minha fronte precisava ganhar uns 20 centímetros, dez para cada lado, para que eu tivesse alguma noção espacial e não acabasse no chão. A história se passava agora em uma tela gigante, mas a entrada no cinema me transformaria demais. Era tudo tão largo e tão claro que eu achei que era infecção alimentar. Passei o dia deitada, tentando digerir tamanha desgraça. Isso, descubro agora mais velha, era bom.