Nude imobiliário

Seu bolso furado e vazio penetrou a minha bolsa vagabunda e falsificada

Foi na semana em que as Torres Gêmeas caíram. Eu fazia estágio em uma agência de publicidade, e ele apareceu lá para mostrar seu portfólio de redator.

As roupas que usava eram da Galeria Ouro Fino, e na época eu achava isso mais sexy que caráter. No elevador lancei minha risadinha tímida, tipo da coisa que faço para enganar rapazes fingindo que sou suave. Não obtive sucesso com meu personagem doce, então escrevi algum texto meio depravado e mandei para o email que estava em seu cartão de visitas. Combinamos de sair, o que nunca ocorreu –e nisso se passaram mais de 20 anos.

Mas o que acho importante ressaltar é que éramos dois durangos extremos em meio a um glamour sufocante. Enquanto os estagiários, quase todos filhos de clientes, chegavam com motoristas em blindados, eu tinha de acordar às cinco da manhã para atravessar a cidade, e ele emanava o puro suco da caipirice não herdeira. Na verdade, o que acho importante frisar mesmo é que um ambicioso agudo sabe reconhecer outro ganancioso ávido. E na única vez que nos vimos, naquele elevador, o match que demos foi claramente capitalista. Como se o bolso furado e vazio dele penetrasse a minha bolsa vagabunda e falsificada. Em algum lugar do cosmos, transamos nossa obstinação vexatória pela aristocracia comprada a prazo.

Eis que semana passada, zapeando os stories do Instagram antes de dormir, vi o que podemos chamar de “a sala mais bem decorada de que já tive notícias”. Eu, que sou uma espécie de voyeur masoquista de imóveis, que entro no site da Axpe só pra sofrer bem gostoso, que apelidei o Casas Brasileiras do GNT de meu Xvídeos, que quando encontrei o Isay Weinfeld fazendo exame de urina o persegui pelo laboratório. Eu desejei lamber aquele tapete, morder aquelas cadeiras, apanhar da mesinha de centro. Quem habitava aquele cantinho de elegância vigorosa?

A vista dava para um campo verde belíssimo. E nada fazia o estilo ostensivo rico babaca. Nada lembrava pisos claros brilhosos ou peças tão caras quanto bregas, estrategicamente posicionadas, tal qual brasões ridículos acima do peito. Poderia muito bem ser a casa de um intelectual progressista angustiado com seus desejos mercantilistas fazendo um tipinho meio farto de seus objetos de design, se algum dia um intelectual progressista angustiado com seus desejos mercantilistas e fazendo o tipinho meio farto de seus objetos de design pudesse ganhar o dinheiro que a publicidade paga.

O rapaz chegou lá. Foi o que ele havia afiançado mais de 20 anos atrás, apenas com a cintilação do seu olhar já gasto pela dispersão em esbórnias.

Por três dias, trocamos toda sorte de imagens eróticas: meu puxador bem cavado, o pezinho retorcido da sua poltrona de leitura, o banquinho de quatro para meu descanso, seus pilotis, minha prumada desnuda, seu pínus, meu cumaru, seu goiabão, meu pau, seu carvalho. “Hmmmm, você malha?” “Já fiz muito retrofit.”

Nada como dar certo na vida.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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