Ruy Castro critica ‘boca imunda’ de Bolsonaro em discurso na ABL; leia íntegra

Um dos momentos de mais aplausos na cerimônia de posse do escritor e jornalista Ruy Castro na ABL, a Academia Brasileira de Letras, nesta sexta-feira, foi quando o novo imortal da instituição citou a Lei Rouanet e fez críticas a quem se opunha a ela, sobretudo os líderes do governo de Jair Bolsonaro.

“[A Lei Rouanet] foi usada como munição na pior guerra contra a cultura já desfechada por um governo no Brasil”, afirmou. “A boca imunda desses agentes tentou fazer do nome Rouanet um palavrão. Quando tiraram seu nome da lei, pensando que assim o humilhavam, não imaginavam o alívio com que Rouanet recebeu a notícia.”

Sergio Paulo Rouanet, criador da Lei Rouanet, foi seu antecessor na cadeira de número 13 da ABL. “É a este homem, que nos deixou em julho de 2022, que tenho a responsabilidade de suceder. Que eu me faça merecedor dessa sucessão e honre sua cadeira.”

Aplaudida, a menção de Ruy à Rouanet vai na direção contrária à grande onda de críticas que esta lei vem sofrendo nos últimos anos. Tal política também é frequentemente alvo de fake news.

Além de celebrar a Rouanet, o jornalista homenageou outros antecessores de seu posto e mencionou detalhes de sua carreira em jornais como a Folha.

Biógrafo celebrado de figuras como Garrincha, Carmem Miranda e Nelson Rodrigues, Ruy recebeu 32 votos entre os 35 acadêmicos da ABL na eleição realizada em outubro de 2022.

Confira a seguir o discurso completo de Ruy Castro ao tomar posse na ABL.

Uma das primeiras conquistas do homem, juntamente com o fogo e a roda, foi a palavra. Os três permitiram ao homem ultrapassar seus limites, graduar-se acima de sua irrelevância naquele cenário e avançar sobre as suas já duas pernas. A diferença é que o fogo e a roda deram ao homem apenas o domínio sobre um meio hostil. Foi a palavra que conferiu ao homem o que lhe faltava: o significado —o entendimento de sua presença no mundo.

Além disso, naqueles primórdios, o fogo e a roda se combinaram muitas vezes para destruir e matar. Já a palavra quase sempre trouxe a luz. Não quero dizer que a palavra fosse inocente —afinal, o primeiro instrumento da escrita pode ter sido um osso, não se sabe de quê ou de quem. A primeira tinta foi o sangue. E, como bem sabemos, nada como a palavra para disseminar o preconceito, a mentira e o ódio. Mas estamos falando de origens, não de fins.

Em pouco tempo, o fogo e a roda foram assimilados como se sempre tivessem existido. Mas a palavra, não. Ela continua a ser uma grande e permanente descoberta. Uma descoberta pessoal, exclusiva de quem está sendo ungido por ela, um Big Bang individual. Neste exato momento, em toda parte, há alguém descobrindo a palavra e a fórmula secreta de que ela se compõe —a soma do símbolo, do som e do significado.

E as palavras são muitas. A palavra dita, a palavra escrita, a palavra impressa. A palavra exata ou a palavra mágica. A palavra aos gritos ou sussurrada; a palavra só pensada, nunca pronunciada; ou a palavra à força silenciada. Tudo é a palavra e a palavra é tudo. Às vezes ouvimos que “uma imagem vale por mil palavras.” Mas, como desafiou Millôr Fernandes, tente dizer isso sem palavras.

É um privilégio estar sendo aceito nesta instituição, cuja matéria-prima é a palavra.

Senhoras e senhores,

A verdadeira trilha sonora da entrada de uma criança no mundo talvez não seja o seu choro ao nascer, mas o momento, muito mais feliz, alguns anos depois, em que, pela primeira vez, ela juntou duas sílabas escritas num caderno e produziu um singelo bê-á-bá. Ou quem sabe esse entendimento não dependeu da combinação de sílabas. Veio-lhe de chofre, de uma só vez, ao se ver diante de um texto escrito —digamos, uma manchete de jornal. E ela conseguiu lê-lo, sem entender como nem se perguntar por quê. De tanto ver palavras impressas e ouvir o som delas, o entendimento do mecanismo lhe surgiu com a instantaneidade da luz à pressão de um interruptor. Posso garantir que isso acontece —porque aconteceu comigo.

Não tive escolha. O jornal, a Ultima Hora, estava repetidamente aberto à minha frente nas mãos de minha mãe, cheio de palavras em corpo 48. Um dia, essas palavras se atiraram aos meus olhos, não silaba por silaba, mas de uma vez só. Foi em 1952: um jato, um amor instantâneo, que se transformou em prisão perpétua. Prisão da qual nunca tentei ou quis escapar.

O jornal como primeiro objeto de leitura, e não a cartilha, pode também ter definido o meu destino. O que eu via à minha frente era a palavra em ação —a ação que se passava nas suas primeiras páginas e nas capas das revistas. Foi nelas que, pouco depois, em 1953, aos cinco anos, fiquei sabendo de uma mulher chamada Marilyn Monroe; em 1954, do suicídio de Getulio; em 1955, da morte de Carmen Miranda; em 1956, dos discos voadores que não paravam de pousar. E daí por diante. Tudo era a extensão por escrito do que os adultos estavam falando na vida real ao meu redor. Só que a História na página impressa parecia mais real do que a vida.

Nesses 70 anos que se sucederam, provavelmente não se passou um dia em que eu não abrisse um jornal, aqui ou em qualquer país em que estivesse e cuja língua entendesse. Não se passou um dia em que eu não respirasse pela palavra.

Senhoras e senhores,

A ideia do jornalismo como profissão me veio quase simultaneamente a aprender a ler e escrever nunca mais olhei para trás. Era o que eu queria e foi o que fiz, com o desplante de fazê-lo exatamente no jornal com que eu sonhava: o Correio da Manhã, do Rio, jornal que meu avô lia desde sua fundação por Edmundo Bittencourt em 1901 e a que sempre foi fiel. Fidelidade que ele transferiu a meu pai nos anos 30 e este a mim nos anos 50. Aprendi a ler pela Última Hora, mas minha bíblia era o Correio da Manhã.

A primeira vez em que entrei na redação do Correio, em fins de 1965 —a convite do articulista José Lino Grünewald, que eu lia com avidez e de quem ficara amigo—, apenas confirmou o que eu imaginava.

Ao subir dois andares e transpor aquela porta na avenida Gomes Freire, na Lapa, às seis horas da noite de um dia de semana, e ao ver o enorme salão iluminado, sob a metralha de dezenas de máquinas de escrever, telefones tocando e gente às pressas de uma mesa à outra com uma folha de papel na mão, não pude deixar de pensar: “É isso que eu queria dizer!”. Um ano e meio depois, aos 19 anos, também a convite de José Lino Grünewald, que me levou ao diretor de redação Newton Rodrigues, eu seria um deles.

Entre os jornais onde trabalhei, três me deram a oportunidade de viver momentos históricos: o bravo Correio da Manhã de 1967-68, ferido de morte na noite do Ato Institucional nº 5, 13 de dezembro de 1968, em que o jornal foi invadido pelos coronéis; o Jornal do Brasil de 1976-77, no começo da abertura democrática, cujos segredos só os seus repórteres pareciam saber; e a Folha de S. Paulo, que, em 1984-85, praticamente sozinha fez o Brasil sair às ruas pelas eleições diretas. Em revistas, passei pela Manchete, Seleções, IstoÉ, Playboy, Veja e muitas mais, cada qual com seu universo e seu estilo, como se escritas em línguas diferentes. O jornalista precisa aprender todas essas línguas.

E a matéria-prima de todas elas é a palavra. A palavra, para o jornalista, não é a mesma que para os escritores. Para o jornalista, ela cabe num lenço molhado. Para os escritores, ela pode exigir o Oceano Atlântico. Mas, ao contrário dos escritores, que, se quiserem, podem se deixar levar pela palavra, o jornalista tem de subjugá-la e submetê-la aos torniquetes fundamentais de seu ofício: a objetividade, a clareza e a verdade.

Foi essa prática, exercida diariamente em Redações por mais de 20 anos, que levei para o outro veículo a que, de surpresa até para mim mesmo, me entreguei : o livro. E nunca mais voltei para as Redações.

Mas as Redações nunca se afastaram de mim. Desde o primeiro livro, publicado em 1989, até hoje, quarenta livros depois, igualmente nunca passei um dia sem estar associado, como colaborador fixo, a um jornal ou revista. É mais forte do que eu. Há dezesseis anos, por exemplo, desde 2007, minha tribuna é a página 2 da Folha de S. Paulo —quatro vezes por semana.

Senhoras e senhores,

Conto isto apenas para tentar demonstrar que minha entrada nesta casa segue uma tradição de 125 anos. A Academia Brasileira de Letras sempre foi também a casa dos operários da palavra, não apenas dos seus artistas. Por aqui, desde a sua fundação, passaram muitos jornalistas. Não me refiro somente aos inúmeros membros que, algum dia, tiveram artigos e poemas eventualmente publicados em jornais. Os que vou citar entraram aqui como escritores, mas foram também homens de Redação, não importa que como simples focas, como já fui um dia, ou estrelas da profissão. Todos foram veteranos da reportagem de rua ou das madrugadas de fechamento da edição. Homens e mulheres que nunca vacilaram diante do papel em branco.

Entre os jornalistas patronos e fundadores das cadeiras da Academia, tivemos Hypollito José da Costa, Evaristo da Veiga, Manuel Antonio de Almeida, Francisco Otaviano, Rui Barbosa, Alcindo Guanabara, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Carlos de Laet. Sem contar um jovem que começou pelos postos mais humildes de um jornal, nos fundos da oficina: o tipógrafo e revisor Machado de Assis.

Entre os herdeiros de suas cadeiras e que não estão mais entre nós: Euclydes da Cunha, João do Rio, Barbosa Lima Sobrinho, Austregesilo de Athayde, Assis Chateaubriand, Alvaro Lins, Alvaro Moreyra, Rachel de Queiroz, Raimundo Magalhães Jr., Francisco de Assis Barbosa, Murilo Melo Filho, Roberto Marinho, Carlos Castello Branco, Otto Lara Resende, Antonio Callado, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar e Carlos Heitor Cony.

E entre os que, há não tanto tempo, ainda estávamos nas bancadas, com os lay-outs à nossa frente, Arnaldo Niskier, Cicero Sandroni, Zuenir Ventura, Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira, Ignácio de Loyola Brandão, o presidente Merval Pereira e eu próprio. Em épocas e lugares diferentes, trabalhei com quase todos e é inacreditável nos vermos aqui hoje, juntos —ainda a serviço da palavra, mas, agora, dispensados da corrida contra o relógio.

A Cadeira 13, que, graças à vossa confiança, tenho a honra de ocupar a partir de hoje, se caracteriza por acolher personalidades para quem a palavra era este instrumento de ação. Homens como seu patrono Francisco Otaviano e, entre outros, o Visconde de Taunay, Augusto Meyer, Francisco de Assis Barbosa e Sergio Paulo Rouanet.

Não é pequena a responsabilidade de sucedê-los. E haja palavras para fazer jus a esta tarefa.

Senhoras e senhores,

A história sempre conheceu o jornalista, político e diplomata Francisco Otaviano de Almeida Rosa. O homem que deu particular dignidade ao Segundo Reinado. O amigo de D. Pedro II —os dois, nascidos no mesmo ano, 1825— e que D. Pedro admirava inclusive por Otaviano recusar os títulos de nobreza que o Imperador lhe oferecia. Otaviano não queria se confundir com aqueles que o próprio D. Pedro chamava de seus “nobres de marmelada”.

Sabe-se tudo sobre o Otaviano liberal, maduro, imperturbável e atento às questões nacionais, das quais participou com seu equilíbrio e coragem —principalmente o Tratado da Tríplice Aliança, que definiu nossa participação na Guerra do Paraguai. Mas Otaviano terá sido sempre assim, quase incorpóreo? Ou quem sabe só se tornou quem era porque, um dia, foi tão diferente?

Quantos saberão do jovem, ardente e atormentado Otaviano? O Otaviano que, aos 20 anos, em 1845, era um discípulo tardio de Byron e, assim como seu contemporâneo Baudelaire, torturado por contradições: sincero e cínico, místico e satânico, sensualista e aspirando à pureza, tudo ao mesmo tempo.

Vide esta carta de Otaviano a seu amigo José Carlos Arêas, de 1845, a respeito de uma possível sua namorada, chamada Olímpia.

“Olímpia”, escreveu Otaviano, “é um tipo especial: gênio de poeta em corpo delicado. Mas não é a mulher dos meus sonhos, nem o belo ideal da minha imaginação. Será porque sou materialista? Será porque sou espiritualista? A mulher deve reunir ao angelicismo, que resolve nossas aspirações celestes, formas terrestres que falem aos nossos frenesis, aos estremecimentos do afrodisismo. A mulher deve ter o coração e o íntimo sentir da virgem, e a lascívia e o apetite da cortesã. Se eu fora poeta da palavra, como sou de pensamento, havia de fazer uma epopéia satanicamente divina da mulher dos meus sonhos.”

Como será recebida essa carta em 2023? Sexista, preconceituosa, machista? Talvez. E com que espanto não teria sido recebida naquele tímido 1845, se viesse a público? Ao escrevê-la, Otaviano mal tinha idade para usar a navalha de seu pai. Mas este era o Otaviano de antes de se tornar o busto de si mesmo em que a vida o converteu.

Ele poderia ter transformado suas contradições em literatura ou poesia, mas não o fez. Os críticos nunca se digladiaram pelo poeta que ele foi. José Verissimo, Ronald de Carvalho e Manuel Bandeira foram alguns que o classificaram como um “poeta menor”. O próprio Otaviano talvez concordasse com isso, daí talvez sua produção poética ser tão esparsa.

Mas o poeta menor foi bafejado pela glória maior. Um de seus poemas, “Ilusão da vida”, estava fadado a viver para sempre: “Quem passou pela vida em branca nuvem/ E em plácido repouso adormeceu;/ Quem não sentiu o frio da desgraça,/ Quem passou pela vida e não sofreu;/ Foi espectro de homem, não foi homem,/ Só passou pela vida, não viveu.”

Haverá um poeta brasileiro que não o inveje por “Ilusão da vida”? Quantos poetas maiores tiveram um poema como este que, adotado pelo povo, tem sido recitado há 170 anos, desde 1853, até por quem não sabe o nome do autor? Quantos poetas legaram uma expressão que se incorporou à língua a ponto de tornar-se um clichê, como “passar pela vida em branca nuvem”?

E quem não gostaria de ser um inventa-línguas, como Otaviano foi? Em outra carta, de 1848, Otaviano tomou emprestado aos franceses o verbo “flâner” e o transformou em “flanar”, no mesmo sentido de passear, andar ao léu —quase 60 anos antes de a expressão se consagrar na pena do grande João do Rio. Em 1847, Otaviano já usara em carta outro verbo inédito, talvez de sua lavra: “balzaquear”, no sentido de entregar-se à imaginação, escrever em pensamento, ser um Balzac sem compromisso. E aventuro-me a dizer que Otaviano é merecedor de outra láurea tão importante quanto pouco conhecida: a de ter sido o pioneiro da crônica no Brasil.

O que é a crônica? Um misto de peça literária, artigo de opinião, pequena reportagem, confissão pessoal, fofoca política, registro mundano, tudo ou quase tudo no espaço de cerca de 50 linhas. A crônica é um minijornal feito por uma só pessoa. Seu assunto pode ser tanto o cotidiano quanto a eternidade —o que o cronista preferir. É um texto que se escreve com as pernas e, às vezes, em cima da perna, de tão à vontade. Digo com as pernas porque os personagens de que trata uma crônica não precisam parar para pensar —pensam andando mesmo. A crônica pode ser tudo, menos um texto de gabinete. O cronista é um flâneur que é pago para escrever. Daí o Rio, que sempre foi a cidade perfeita para flanar, ser historicamente o cenário natural da crônica.

Quando se diz que Otaviano pode ter sido o pioneiro desse gênero tão brasileiro é porque não há registros de crônica anteriores a 1852, quando ele começou. Fala-se de três textos de Joaquim Manuel de Macedo na revista Guanabara em 1851, mas a definição deles como crônica é discutível. Com Otaviano, não se discute: de dezembro de 1852 a julho de 1854, ele publicou no Jornal do Comércio uma série de crônicas sob a rubrica “A Semana”, livres de qualquer dúvida quanto às suas características.

Com ele começou uma das linhagens mais ilustres do jornalismo e da literatura brasileira, a da crônica, com seus grandes praticantes como José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Julia Lopes de Almeida, João do Rio, Alvaro Moreyra, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antonio Maria, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony.

Daí chego a supor que o fundador desta Cadeira 13, o Visconde de Taunay, tenha escolhido Otaviano como patrono por admirá-lo até mais como homem de letras do que como homem público. E quem sabe não seria esse lado da produção de Otaviano que daria mais propriedade ao seu nome na Academia do que suas façanhas no mundo profano, principalmente a política, que ele definia como uma “infecunda Messalina”?

Mas, querendo Otaviano ou não, Messalina fecundou-o em administrador, Conselheiro do Império e diplomata. E foi nesta última condição que, em 1864, a História o encontrou em Buenos Aires, como ministro plenipotenciário do Império do Brasil na missão do Rio da Prata — articulando com a Argentina e o Uruguai a aliança para deter as investidas expansionistas do paraguaio Solano López. Era a Guerra do Paraguai.

Senhoras e senhores,

Se Francisco Otaviano foi o artífice desta guerra, o escritor, engenheiro e soldado Alfredo d’Escragnolle Taunay, neto de barões, foi além: ele lutou nela — e com suas próprias armas: as palavras.

Taunay tinha 21 anos quando a guerra estourou. Alistou-se no Exército e foi para o teatro de batalha. E viveu em três anos o equivalente à vida inteira de muitos.

É provável que o jovem Alfredo, segundo-tenente da Artilharia do Exército, não tenha disparado um tiro no conflito. Seu lugar na expedição era a retaguarda, como engenheiro militar. Engenheiros numa guerra são os que calculam os quilômetros a vencer, abrem estradas, constróem pontes. Mas isso não os livra dos horrores de qualquer guerra, e Taunay viu seus companheiros, tão jovens quanto ele, mortos ou agonizantes ao seu lado, estraçalhados pelas armas então disponíveis: facões, baionetas, pistolas, mosquetes e canhões.

Taunay condensou tudo num livro extraordinário que escreveu aos 28 anos, em 1871, A retirada da Laguna. É a história do seu contingente: uma tropa de 3.000 homens e setenta e uma mulheres, todos a pé, muitas das mulheres com bebês de colo. Partindo do Rio em março de 1865, eles levaram quase dois anos atravessando 2.000 quilômetros até a fronteira do atual Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Nesse percurso, enfrentaram rios que enchiam e alagavam tudo, pântanos que lhes iam até o pescoço, a lama em que seus canhões se afundavam, gramíneas que cortavam como lâminas, os bois que fugiam assustados, as deserções em massa, répteis, insetos, cansaço, fome e as epidemias de cólera, tifo, malária e beribéri. Quase mil homens morreram.

A retirada da Laguna descreve o avanço quase suicida dessa expedição por território paraguaio até o confronto com o inimigo — este, a cavalo, em muito maior número, com uniformes impecáveis, alimento de sobra e muito mais poder de fogo — e o recuo forçado dos nossos soldados, de volta ao lado brasileiro a partir da fazenda Laguna, com os paraguaios no seu encalço. O livro é um relato metro a metro, com absurda capacidade de descrição. É como se Taunay escrevesse com uma câmera e um microfone, não com um lápis. Eis um trecho: “Fomos assim todo o dia, caminhando com grande estrépito, no meio das aclamações dos nossos, dos gritos agudos e ferozes do inimigo, dos mugidos do gado, das explosões de pólvora, numa confusão de homens e coisas, um caos de fumo e pó.”

Taunay falou do frio noturno e das carroças que eles tinham de incendiar para aquecer os soldados esfarrapados. Dos coléricos já moribundos implorando em coro por água e tendo de ser abandonados para não contaminar o resto da tropa. Dos soldados que preferiam se matar. Poderia ter sido um repórter de farda. Seus conhecimentos gerais, no entanto, e seu universo verbal fizeram dele um escritor.

Mas Taunay passou à posteridade não pela Retirada da Laguna, e sim por seu romance, Inocência, de 1872. Uma história de amor, em que a natureza e o ambiente às vezes se sobrepõem aos personagens e à própria trama, e assumem o primeiro plano. Era como se, em Taunay, o ficcionista vivesse em luta contra o não-ficcionista. Isso não impediu o triunfo de Inocência, até outro dia o romance brasileiro mais traduzido no mundo.

E, como talvez fosse inevitável, Taunay também ingressou na política. Ocupou todos os cargos e, em setembro de 1889, apenas dois meses antes da República, o Imperador concedeu-lhe o título de visconde. República a que Taunay, ao contrário de muitos de seus pares, nunca aderiu. E, a 20 de julho de 1897, foi um dos 40 fundadores da Academia Brasileira de Letras e o primeiro a assumir esta Cadeira 13. Mas só a ocupou por um ano e meio, pois morreu em 25 de janeiro de 1899.

Cadeira que não chegou a abrigar fisicamente seus dois titulares seguintes, o médico baiano Francisco de Castro e o jurista pernambucano Martins Junior. Francisco de Castro foi eleito em 1901, mas não tomou posse. A peste bubônica vitimou-o pouco antes, logo ele, que era sanitarista. Já Martins Junior foi eleito em 1902 e tomou posse por carta, mas a morte também o levou, em 1904, antes de ele assumir o lugar.

Como médico, Francisco de Castro deixou muitos artigos sobre sua especialidade, a saúde pública, reunidos num livro póstumo com prefácio de Rui Barbosa. E era também poeta, autor de um livro de versos, Harmonias errantes, prefaciado por Machado de Assis.

Quanto a Martins Junior, era advogado, fundador de jornais e autor de uma história do Direito no Brasil. Mas, assim como Francisco de Castro, sua identidade secreta também era a poesia. Ou talvez nem tão secreta, porque Martins Junior teve certa voga no fim do século XIX por sua defesa de uma poesia inspirada nas conquistas da ciência, uma poesia “científica”, como ele dizia, em oposição ao “ouvir estrelas” de Olavo Bilac. Bilac, naturalmente, não tomou conhecimento da provocação e Martins Junior morreu sem saber que, em poucos anos, teria uma espécie de redenção póstuma, na figura de um poeta que parecia adepto da sua poesia “científica”: Augusto dos Anjos.

E então surgiu a lenda maldita da Cadeira 13. Devido ao curto mandato do Visconde de Taunay, à morte prematura de seus dois sucessores e ao fato de ser a de número 13, tornou-se a cadeira fatal, sobre a qual parecia pender uma guilhotina.

Mas a eleição seguinte, a do também jurista pernambucano Souza Bandeira, em 1905, a reabilitou, porque ela foi dele pelos doze anos seguintes, até 1917. E com mérito, pela sua participação como ensaísta na Revista Brasileira, ao lado de Machado, Nabuco e Taunay, e por ele ser, também em 1905, um dos escritores que João do Rio entrevistou para seu livro O momento literário. Souza Bandeira, aliás, era tio de Manuel Bandeira.

A dissipar de vez o estigma da Cadeira 13, Souza Bandeira foi sucedido pelo diplomata mineiro Helio Lobo, que a ocupou desde sua posse, em 1919, até sua morte, em 1960 — por 41 anos! É verdade que, como o ativo diplomata que era, Helio Lobo não teve muito tempo para sentar-se na cadeira. Passou boa parte da vida em outras cadeiras, principalmente no Exterior: secretário-geral do Brasil na Conferência de Versalhes, em 1919, cônsul geral em Londres e Nova York nos anos 20, delegado à Conferência para a Manutenção da Paz, em Buenos Aires, em 1936, e cargos no Uruguai, na Suíça e na Holanda.

Helio Lobo pode ter sido um membro ausente, mas foi sempre fiel à Academia. Em 1922, o jovem repórter Peregrino Junior, futuro Acadêmico, mas, então, ainda deslumbrado com o Futurismo então em voga, fez tudo para arrancar de Helio Lobo uma adesão da Academia àquele movimento. Em vão. Inconformado, Peregrino perguntou-lhe: “Então, se não aprova o Futurismo, a Academia é passadista?”. E Helio Lobo respondeu: “Não. A Academia é presentista”.

Senhoras e senhores.

Pergunto eu: e se a criação artística puder ser julgada por esse presente perene, alheio à História e ao tempo? E se a criação artística contiver em si o tempo de que necessita e todos os tempos? Esta poderia ser uma das definições do trabalho do gaúcho Augusto Meyer, o ensaísta, poeta e agente da cultura que sucedeu a Helio Lobo em 1960.

Segundo outro escritor gaúcho, Luiz Augusto Fischer, em comunicação aqui mesmo nesta sala, em 2002, a leitura literária para

Augusto Meyer oferecia “a possibilidade de viver a vida dos séculos através de algumas horas de concentração sobre as páginas de um livro”. Ou seja, o livro como motor do conhecimento, não como seu reboque. Não é uma idéia muito popular hoje, em que a literatura parece ter se reduzido a um apêndice da História. Isso não tornará Augusto Meyer um pouco antigo? Não. Para Fischer, ele era apenas “pré-moderno”.

Ou, pelo menos, tornou-se isso porque, em jovem, Augusto Meyer tentou, por algum tempo, ser “moderno”. Em 1922, aos 20 anos, ele era um dos muitos de sua geração que buscavam a modernidade.

Busca que acontecia em toda parte. Um mundo acabara de morrer, sepultado pela Grande Guerra e pela Gripe Espanhola, e outro começava a nascer, ao embalo da velocidade, da psicanálise, do automóvel, do cinema e da revolução nas artes plásticas e gráficas. A poesia não podia ficar parada. Daí haver uma sede pela sua renovação nos garotos do Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Natal — e Porto Alegre.

No começo, quase todos eles imitavam o poeta francês Paul Fort, criador de pequenos poemas quase prosa, de enganadora simplicidade; imitavam o belga Émile Verhaeren, o primeiro a cantar as “cidades tentaculares”; e imitavam principalmente o suíço Blaise Cendrars, inventor do poema-piada. Depois, passaram a se imitar uns aos outros, até que, livrando-se dos clichês e dos cacoetes, alguns conquistaram linguagem própria.

Augusto Meyer foi dos primeiros a encontrar a sua, e sem precisar fazer, de Porto Alegre, Paris. Na verdade, esta linguagem estava às suas portas, lá mesmo nos pampas. O Sul foi a sua natural inspiração, e que bom que tenha sido, mas isso lhe custou passar aos compêndios como alguém que “trabalhou” o regionalismo gaúcho — como se isso fosse uma limitação. Como se, então, todos aqueles poetas de toda parte do Brasil não praticassem cada qual o seu regionalismo, provinciano e dialetal, alguns até desvairados.

Mas Augusto Meyer não estava fadado à província e aos dialetos. Ao se voltar para o mundo, foi como o ensaísta de livros como À sombra da estante, A chave e a máscara e A forma secreta que ele se fez ao mar. A trama de sua rede era para os peixes grandes — Dante, Camões, Shakespeare, Dostoievski, Machado, Rimbaud, Borges —, mas ele os fazia caber num artigo de jornal ou em cinco ou seis páginas de livro. Era o de que seus ensaios precisavam para nos desvelar mundos. Abundantes provas disso se encontram na antologia Augusto Meyer — Ensaios escolhidos, de 2007, organizada e prefaciada pelo Acadêmico Alberto da Costa e Silva.

Em cada texto vê-se o rigoroso “pré-moderno”, avesso a concessões formalistas. Ao analisar a postura dos tradutores diante dos poetas, Augusto Meyer não admitia que eles subvertessem o sentido do poema para fazê-lo rimar como o original. E dizia, daquele seu jeito insuperável: “A rima, essa fêmea lúbrica e devassa, que anda sempre aos beijos amancebada no fim dos versos, obriga o melhor tradutor a inevitáveis traições do sentido poético. Para saltar o obstáculo, ele não hesita em alijar a carga; tudo será esquecido em benefício da rima.”

E Augusto Meyer tinha autoridade para denunciar isto. Assim como seus contemporâneos Agrippino Grieco, Manuel Bandeira e Alvaro Lins, sua erudição era de assustar — com Agrippino, aliás, travou memorável batalha sobre as influências e citações secretas no

Brás Cubas. Era uma erudição que lhe permitia descobrir gírias plebéias nos clássicos mais engomados, o trânsito clandestino de longos textos entre um livro e outro e expressões que já eram arcaísmos quando usadas por um poeta, digamos, do século XIII. É verdade também que, às vezes, ele se esquecia do leitor e lhe servia parágrafos inteiros em alemão ou italiano, sem traduzi-los, como se o leitor fosse íntimo dessas línguas.

Mas, ao mesmo tempo em que era um homem-estante, Augusto Meyer podia ser um homem-coração, um homem-memória. Ninguém mais lírico do que ele quando, esquecendo momentaneamente as prateleiras, olhava pela janela. Por ela, via não só a paisagem, mas também o seu passado.

Como quando descreveu sua paixão pela enseada de Botafogo, aqui no Rio, aonde chegou nos anos 30 e da qual nunca mais saiu. “O meu namoro com esta enseada”, escreveu ele, “começou há muitos anos, no tempo do era uma vez. Era uma vez um menino cheio de bolhas de sabão na cabeça e uns cartões postais selados com o retrato de Pedro Álvares Cabral, que o pai lhe mandava de uma distante Babilônia chamada Rio de Janeiro.” Augusto Meyer dizia de muitos cariocas que eram “forasteiros distraídos — chegaram, gostaram e ficaram”, e se incluía neles.

Meyer veio para o Rio em 1937, a convite de Getulio Vargas, seu ex-colega de porta de livraria em Porto Alegre e então presidente da República. Vargas o chamou para executar um projeto meritório: a criação do Instituto Nacional do Livro — um organismo para pôr mais livros na mão dos brasileiros. Isso significava tornar o livro um objeto de amplo alcance, com a criação de bibliotecas, em parceria com as prefeituras. Destas, o Instituto Nacional do Livro só exigia que providenciassem um imóvel, com estantes, fichários e pessoal capacitado. O Instituto se encarregaria de abastecê-las de livros.

É notável como Augusto Meyer praticou as duas águas. Era capaz de alternar a análise de um verso de Dante no suplemento literário do Correio da Manhã com a fiscalização de almoxarifados nas bibliotecas dos grotões. E logo ele, talvez o não-administrador por excelência. Que força estranha o fez enfrentar a burocracia, a má vontade das prefeituras, a falta de papel pelo racionamento da Segunda Guerra e a precariedade dos meios de transporte no país? O que o moveu e o fez superar tudo isso? Talvez a consciência de uma vocação mágica: a de fazer do Brasil uma extensão das suas estantes. E de cada brasileiro um leitor.

Para mim, esta foi a sua grandeza. Quantas bibliotecas Augusto Meyer não terá plantado em seus 25 anos à frente do Instituto Nacional do Livro? Fala-se em doze mil. Quantos leitores não terá formado? Talvez milhões. E quanto de conhecimento isso não gerou? É incalculável.

Ao morrer, em 1970, Augusto Meyer deixou estantes abarrotadas pelo país. Mas o que será que fizemos delas?

E, senhoras e senhores, quanto o Brasil não deve a seu sucessor na Cadeira 13, o jornalista e biógrafo Francisco de Assis Barbosa? Paulista de Guaratinguetá, de 1914, carioca desde 1931, Acadêmico de 1970 a 1991, e, para resumir sua vertiginosa carreira, um funcionário da cultura, em todos os níveis e dimensões.

Com carteira assinada e mesa na Redação, Francisco de Assis Barbosa trabalhou nos principais jornais, redigiu inúmeros verbetes de enciclopédias como a Britânica, a Barsa e a Mirador, foi membro de importantes instituições culturais e, como escritor, produziu perfis e ensaios sobre Evaristo da Veiga, Machado de Assis, o esquecido Bethencourt da Silva, Roquette-Pinto, Juscelino Kubitschek. Mas até esse currículo empalidece diante do que Chico Barbosa, como todos o chamavam, fez por Lima Barreto.

Ele nada menos que resgatou Lima Barreto da obscuridade a que ele parecia condenado desde sua morte, em 1922, quando, alvejado pela pecha de “escritor de bairro”, deu-se início ao seu esquecimento.

Ser esquecido é o destino natural de todo brasileiro que comete o equívoco de morrer. Mas, no caso de Lima Barreto, esqueceu-se também a obra. Nos trinta anos de oblívio que se seguiram, Lima pareceu viver apenas na memória de seus contemporâneos sobreviventes, como Astrojildo Pereira e Agrippino Grieco, e na dos poucos que se consideravam seus discípulos, como Marques Rebelo. Seus romances estavam virtualmente fora de catálogo — não mais que uma ou duas reedições nesse período, em apressados livros de bolso.

A crítica também o deixara de lado. Numa consulta à primeira edição, de 1951, da Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, de Otto Maria Carpeaux, a soma de artigos publicados sobre Lima Barreto, de sua morte até aquele ano, coube em meia página do livro. Fez-se com Lima Barreto o mesmo que com Adelino Magalhães, que tem meras cinco referências no livro de Carpeaux; com João do Rio, com uma única referência; e com Gilka Machado, simplesmente ausente do livro. Eles foram abandonados. Que literatura é esta, tão rica que pode se dar ao luxo de cancelar escritores de tal porte?

Francisco de Assis Barbosa, desde meados dos anos 40, propôs-se a ressuscitar Lima Barreto. Dedicou-se a recuperar tudo que ele escrevera, os papéis que deixara inconclusos, seus diários e cartas e as colaborações em jornais há muito desaparecidos. Chico Barbosa cuidou de tudo isso, revirando até o fundo dos armários de comida na casa dos irmãos de Lima Barreto em Todos os Santos, na Zona Norte do Rio.

Teve uma ajuda preciosa: a do jornalista e futuro Acadêmico Raimundo Magalhães Jr., íntimo dos fichários da Biblioteca Nacional, e que levantou o que foi possível da produção efêmera de Lima Barreto. Duas tentativas de publicar sua obra completa fracassaram. Mas Chico Barbosa continuou a bater às portas das editoras e, finalmente, em 1956, saiu a coleção em dezessete volumes pela Editora Brasiliense — encadernados e vendidos a prestações pelos vendedores viajantes, de porta em porta, em todo o país. Era a vitória. Lima Barreto estava de volta, maior do que nunca.

E não só isso. Durante os anos em que lutou pela obra de Lima Barreto, Chico Barbosa foi seduzido pela vida do escritor. O acesso a velhos amigos de Lima, o convívio com seus papéis íntimos e um amplo conhecimento do Rio do começo do século tornaram inevitável que transformasse isso tudo numa biografia. E, assim, em 1952, quatro anos antes da obra completa, tivemos A vida de Lima Barreto, pela Editora José Olympio.

Para mim, que décadas depois também me aventurei pelo gênero da biografia, é particularmente honroso sentar-me à cadeira um dia ocupada por Francisco de Assis Barbosa. Sua importância não está apenas em ter resgatado Lima Barreto para a literatura brasileira, embora isto já seja sem preço. Mas também em ter dado uma nova dimensão à biografia no Brasil — até então, quase sempre, uma narrativa à base de material de segunda mão, já publicado, mantendo-se todos os erros já cristalizados, e de muita imaginação por parte do biógrafo. Chico Barbosa fez diferente: saiu à rua, foi às fontes, fez-lhes perguntas, checou as respostas. Como deve ser.

A vida de Lima Barreto inspirou toda uma nova geração de biógrafos, que levaria quase quarenta anos para aparecer, mas veio para ficar e da qual me orgulho de fazer parte.

Obrigado, Chico Barbosa, por nos ter aberto o caminho.

E também obrigado, Sergio Paulo Rouanet, por nos ter aberto tantos caminhos que nos permitiram entender o nosso tempo. Rouanet, que sucedeu Chico Barbosa na Academia em 1992, não se limitou a entender esse tempo, mas ajudou a transformá-lo. Fez isto em sua tríplice atuação: como diplomata — ele foi o Brasil em Zurique, Copenhague, Berlim, Praga —, como gestor público e como pensador.

Em seus livros, principalmente As razões do Iluminismo, Rouanet alertou para a crise no pensamento mundial. Identificou os equívocos da modernidade, como o progresso técnico que desconsidera a justiça, ignora a ecologia, rebaixa os patrimônios culturais e contribui para a sua depredação. O futuro não é uma continuidade inevitável do passado e nem o presente é necessariamente preferível a este, diz ele — assim como o socialismo dos séculos XIX e XX não é um guia obrigatório para o do século XXI. Mas, ao mesmo tempo, não se pode parar a História, nem ignorar as conquistas da Humanidade desde o Renascimento. A partir delas podemos pensar numa nova modernidade, ecologicamente sustentável, com racionalidade econômica, propósitos éticos e respeito à vida.

Rouanet denunciou “a desrazão travestida de razão” e as “posições de direita defendidas com um discurso de esquerda”. Ensinou-nos que existe “uma razão louca e uma razão sábia”. Que “a inteligência não tem pátria” e que “as culturas são dinâmicas, híbridas, sincréticas, internacionais — viajam e se confundem entre as nações”. Rouanet sonhou com “um mundo melhor e mais belo, não apenas mais rico”. Mas previu também “o advento de um novo irracionalismo” e que “o verde-amarelo é a cor do nosso irracionalismo”. Talvez devêssemos tê-lo escutado com mais atenção.

Hoje me dou conta de que, antes de admirar o filósofo Rouanet, eu já fora bafejado por seu trabalho, ao ver na estante o volume das Obras escolhidas, de Walter Benjamin, que ele traduziu em 1985 e que comprei na primeira semana. E me lembro de, ao cobrir em Paris o bicentenário da Revolução Francesa para o jornal O Estado de S. Paulo, em 1989, descobri um revolucionário original e apaixonante, anárquico e delirante, Rétif de La Bretonne. Por alguns dias, Rétif foi minha propriedade particular. Mas, ao voltar para o Brasil, constatei que um brasileiro já escrevera um livro inteiro sobre ele: Sergio Paulo Rouanet, com O espectador noturno.

E o que dizer de seus estudos sobre Freud, Foucault e Habermass, este em parceria com Barbara Freitag, e sobre Machado de Assis, além de seu formidável levantamento da correspondência de Machado, em cinco volumes, pela Academia Brasileira de Letras?

Certo dia, Rouanet declarou numa entrevista: “O grande complexo de inferioridade do intelectual é o de se sentir inútil. Quando um intelectual consegue fazer coisas úteis, e acho que consegui fazê-las, isso dá uma grande alegria.” Rouanet disse isso em 2012, vinte anos depois da criação de uma lei de incentivo à cultura no Brasil, de sua autoria — lei que autorizava os produtores a buscar investimento em empresas privadas para financiar projetos culturais, permitindo que essas empresas abatessem no imposto de renda uma parcela do valor investido.

Com isso, ele simplesmente despertou o empresário brasileiro do seu egoísmo e letargia, e o trouxe para o lado da cultura e da criação. Rouanet dissolveu também a hostilidade secular entre os artistas e os patrões, e mostrou que eles podiam trabalhar juntos. Tudo isso com a lei que levou o seu nome.

Naqueles 20 anos, o nome de Sergio Paulo Rouanet esteve por trás de livros, salas de concerto, museus, exposições de arte. Em cada peça restaurada do patrimônio histórico, cada biblioteca que sua lei impediu de fechar, cada ciclo de debates e conferências e em incontáveis festivais de teatro, cinema, poesia, música popular, folclore, dança. Como calcular o ganho da nação com tudo isso? O ganho inclusive social e econômico, com os empregos gerados. E os talentos revelados, as carreiras despertadas, o público conquistado?

Essa ciclópica produção gerada pela Lei Rouanet continuou pelos anos seguintes, até que novos tempos — na verdade, velhos tempos que se faziam de novos, como ele antecipara — dedicaram-se a corrompê-la com fake news. Ela foi usada como munição na pior guerra contra a cultura já desfechada por um governo no Brasil. A boca imunda desses agentes tentou fazer do nome Rouanet um palavrão. Quando tiraram o seu nome da lei, pensando que assim o humilhavam, não imaginavam o alívio com que Rouanet recebeu a notícia.

A Lei Rouanet, enquanto íntegra, já seria um considerável legado. Mas, maior ainda que a Lei Rouanet, como disse o educador e político Cristovam Buarque, foi a Lição Rouanet. A lição do pensador, e de um pensador brasileiro.

É a este homem, que nos deixou em julho de 2022, que tenho a responsabilidade de suceder. Que eu me faça merecedor dessa sucessão e honre sua Cadeira. A fabulosa Cadeira 13.

Senhoras e senhores,

O aqui já citado Agrippino Grieco disse certa vez: “A ciência progride. A literatura, não. Copérnico destruiu Ptolomeu. Camões não destruiu Homero.”

A literatura permanece. E a Academia que agora tenho a honra de integrar, graças à vossa benevolência e a quem agradeço, é uma prova dessa permanência. Por suas cadeiras, nesses 125 anos, passaram brasileiros e brasileiras de todos os talentos e especialidades. É a instituição mais representativa da nossa cultura. Cada um que nela ingressa traz a carga de sua experiência.

Este é um momento especial para minha mulher, a escritora Heloisa Seixas, a quem submeto primeiro tudo que escrevo e secretamente me beneficio de suas idéias, correções e sugestões. Especial para minhas filhas Pilar e Bianca; para minha enteada Julia Romeu e para meus netos Isabel, João Ruy, Teresa, Olivia e Aurora, todos aqui presentes. Eles sabem que, em algum momento do passado, a vida poderia ter seguido outro curso — um longo não-curso, levado por uma garrafa. Mas um “Sim” dito há 35 anos, a favor da sobriedade, da lucidez e da vida, reverteu esse curso.

Não por coincidência, foi também há 35 anos que passei a dedicar-me ao formato que se considera eterno: o livro. Devo isto ao editor Luiz Schwarcz, da nascente Companhia das Letras, de que sou hoje o autor mais antigo em atividade e com mais títulos publicados.

Como escritor, tenho falado de muitos homens e mulheres do século XX, todos mestres em seus ofícios. Mestres de uma cultura ainda não de todo estudada, porque praticada em veículos populares: livros baratos, peças escandalosas de teatro, programas de rádio cheios de ruídos, filmes que se perderam, discos fáceis de quebrar. Uma cultura talvez “alta” para ser considerada autenticamente “do povo” e, ao mesmo tempo, “baixa” para merecer ensaios profundos, com citações de pé de página. Mas foi uma cultura que circulou pelo coração de milhões de brasileiros — ou pelo coração deste brasileiro.

Com a vossa permissão, entram comigo nesta Casa Nelson Rodrigues, Garrincha, Carmen Miranda, Orlando Silva, Lucio Alves, João Gilberto, Tom Jobim, Dolores Duran, Agrippino Grieco, Gilka Machado, Orestes Barbosa, Pixinguinha, Ary Barroso, Grande Otelo, Rubem Braga, Antonio Maria, Leila Diniz, Paulo Francis, Millôr Fernandes, J. Carlos, Di Cavalcanti e muitos mais. E, por fim, inteiro, o Rio de Janeiro.

Muito obrigado.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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