Tente vazar da vida de um homem cis mimado para ver o que acontece
Vi no Instagram da ilustradora e quadrinista Helô D’Angelo que ela, em parceria com a editora Bebel Books, está procurando histórias de mulheres ou pessoas não binárias que já sofreram com o comportamento machista de homens cis. Na mesma hora tive 632 gatilhos. E agora serei obrigada a escrever sobre cada um deles ou não conseguirei dormir.
Uma mulher da minha idade, ao olhar para trás (muitas, infelizmente, ao olhar para o lado), pode muito bem dividir 80% do seu périplo amoroso em clássicas cenas de alto grau de masculinidade tóxica. Só para aquecer a conversa, pensei aqui em alguns personagens típicos que se encaixariam muito bem no livro.
Vamos começar com o tradicional “não sobe que eu te derrubo”, que aparece quando você teve uma semana boa no trabalho, recebeu aumento, foi elogiada pela equipe, ganhou um prêmio, vai fazer uma viagem importante para a carreira. O que o fofo invejoso e inseguro faz com você naquela exata semana? Maltrata, ignora, coloca defeitos no seu cabelo, aperta o gordinho do seu braço, te lembra, do nada, de algum momento em que sua autoestima estava no chão e pergunta como assim você deixou acabar o queijo preferido dele.
Tem também o insuportável “você precisa aprender a se divertir mais”. É quando o cara é o rei das festas, da socialização, dos encontros, do “só mais um copo e já vamos”. E ele, sempre quimicamente alterado, nunca quer ir embora de nenhum evento, por pior que seja. E você até iria sozinha, dane-se, largando o mala na festa, mas ele te segura: “Fica, a gente precisa se divertir mais!”.
E você está exausta porque trabalha muito e ainda cuida da casa, dos cachorros, dos filhos, dos boletos. Tudo isso em proporções —não à toa o feminismo fala tanto sobre carga mental na vida das mulheres— muito superiores às dele.
Mas o entretenimento em forma humana te abraça, simula um air-forrozinho com as ancas e dá aquele sorriso guerreirão de quem se considera um santo por aguentar a sua carinha de adulta cansada: “Você já foi tão legal!”.
Quando era mais nova, cheguei a namorar algumas vezes com o tipo “não sou violento, sou enfático”. Teve socos em volantes, janelas, mesas. Celulares atirados em paredes e no chão. Carros dirigidos em alta velocidade em marginais e rodovias. Gritos e interrupções. Mas ficava tudo na conta da personalidade forte de um homem vigoroso, nunca na do descontrole de um infrator.
Passemos agora para o pavoroso “faço qualquer loucura por amor, desde que seja o amor-próprio”. Nós, mulheres, com a ajuda de terapia, amigos e uns comprimidos de venlafaxina quando a coisa complica, aceitamos com alguma dignidade os 5.279 foras que levamos ao longo da nossa história. Mas tente vazar da vida de um único mimado criado para jamais tirar sua bunda da poltrona de ouro do topo da cadeia alimentar.
Uma vez aturei, durante meses, um maluco me ameaçar e deixar recados no meu celular dizendo que eu era uma vaca manipuladora desgraçada nojenta puta que usava as pessoas para exercer o poder da conquista. Eu só tinha deixado de gostar dele.
Por fim, chegamos ao “cafajeste bacanão e desconstruído pois honesto com suas limitações afetivas”.
É muito difícil categorizá-lo como manipulador ou afetivamente irresponsável, porque ele é o cara que TE AVISA, pelado e no seu colo, que não quer nada com você. E avisa outras 78 pessoas, ao mesmo tempo, que também não quer nada com elas. Avisa inclusive que também não quer nada com todas as suas amigas, das quais ele vai dar em cima na primeira oportunidade, já que te avisou antes.
Mas vamos pensar como seria se o “boa alma indisponível” fosse um batedor de carteira. Ele entra no restaurante e grita “eu gostaria de avisar a todos, porque meu lance é o olho no olho, que a qualquer momento eu posso levar a bolsa de todo mundo e, como estou armado, talvez até matar uns dois ou três”.
Você acharia esse cara menos bandido só porque ele te deu a chance precária e duvidosa de ir embora no meio de um assalto?