Coisar é verbo de quem está com pressa, tesão ou tem lapsos de memória
Sempre passo nervoso quando leio minha crônica neste jornal e percebo que escapuliu a palavra “coisa” em alguma frase. “Preciso aumentar meu repertório e não entregar a coluna correndo toda vez”, concluo. Acontece que “coisa” está entre as coisas mais deliciosas do mundo. E precisamos de regalos assim, tanto na vida como na escrita.
Minha filha, por exemplo, quando chega cansada da escola, só quer se comunicar na língua da coisa. Deita no sofá, preguiçosíssima, e começa: “Mamãe, aquela coisa, lembra? Pega pra eu poder coisar essa coisa aqui?”. Ai de mim se não entender! Com razão, ela fica frustradíssima.
Na terapia, se insisto que tem alguma coisa que me pegou na fala de alguém ou que estou sentindo uma coisa no corpo que ninguém encontra em exames de sangue ou de imagens, sei que cheguei à caixa-preta do avião que tento manter sem despencar desde que me senti coisada pela primeira vez.
Dizendo uma coisinha besta qualquer, meus amigos já me salvaram inúmeras vezes de coisas horríveis que passaram pela minha cabeça. O primeiro banho da minha filha foi embalado pela minha voz dizendo, ao fundo, “cuidado, ela ainda é uma coisinha tão pequena”. “Viu só que amor? Nunca vi coisa assim.” O amor que não dá conta de explicação é “a coisa” em seu esplendor e excelência.
“Alguma coisa acontece no meu coração” é a frase mais bonita que alguém já disse sobre São Paulo. Acredito que muitos escritores passem os dias tentando definir “a coisa” com sagacidade, elegância e erudição. O Houaiss inteirinho é uma tentativa bastante válida de dar conta da coisa toda. Às vezes, por ato falho ou aptidão em ser coloquial, apenas me rendo à exatidão sonora e escrita da palavra “coisa”, acreditando que é o melhor que posso fazer pela arte e pelo mistério da vida.
Hoje, no supermercado, perto do Diabo Verde, eu vi “o coiso” —nada define melhor um namorado ruim do passado do que chamá-lo de “coiso”. Se algo não sai do jeito que queremos (e sabemos que ser mimado é uma praga), só nos resta lamentar, sem muita personalidade ou definição: “Que coisa!”.
E quando Caetano, citado aqui pela terceira vez pra defender a dimensão poética da coisa, diz “coisa linda”, nós sabemos que nenhuma palavra definiria de forma mais profunda e literária o quão bela e amada uma coisa pode ser.
Fui assaltada no começo deste ano a caminho do velório do pai do meu melhor amigo. Logo que cheguei ao cemitério, com caquinhos de vidro na roupa, no cabelo e até dentro do sutiã, uma amiga correu até mim e falou: “Menina, o que aconteceu? Vi você chegando com o carro todo coisado!”. E eu respondi: “Usaram alguma coisa pra arrebentar o vidro, pegaram o celular e mais alguma coisa que nem sei”. Assim que percebemos que estávamos falando a língua da coisa, começamos a rir, apesar do velório e do susto. “Cada coisa que acontece com a gente!” Em meio ao caos, há coisas, literalmente, que vêm pra nos alegrar.
Outro dia fiz uma vitamina pra minha filha que coisou. Não deu certo. Eu estava ansiosa para que a noite chegasse logo e eu pudesse fazer certas coisas ou coisar —agora num sentido nada infantil, ainda que os bebês nasçam dessas coisadas que a gente dá.
“Coisar” é verbo de quem está com pressa, tesão ou tem lapsos de memória. É pra quando “mexe qualquer coisa dentro doida”. E que coisa magnífica poder se expressar tal qual Caetano Veloso, minha filha ou um jovem que fumou tanta maconha que parou de achar que a dor na cervical é a coisa mais infernal do mundo.
Agora chega, porque “esse papo já tá qualquer coisa” e eu já tô “pra lá de Marrakech”.