Meu sonho é encher um ônibus com meus amigos e parentes e invadir o Fasano Boa Vista
O Garoto (é assim que ele assina o e-mail) me escreve porque quer saber “o que resta do Tatuapé” na minha “rotina e costumes” de “jovem senhora morando em bairro nobre”.
Me lembrei de quando um escritor de meia-idade, que também é jornalista, veio até minha casa fazer meu perfil para uma revista masculina. Eu tinha acabado de lançar um livro que, além de ter ficado entre os cinco mais vendidos do país, estava em disputa por duas grandes produtoras para ser adaptado para o cinema. Eu também já era colunista deste jornal, e minhas crônicas já naquela época ficavam entre as mais lidas e compartilhadas. Somados, os roteiros de comédias que eu havia escrito tinham levado mais de 5 milhões de pessoas às salas de cinema.
Mas por que falar sobre o sucesso de uma mulher, não é mesmo? Ainda mais uma mulher que tinha a mesma profissão daquele escritor jornalista de meia-idade, que era uns quinze anos mais velho do que eu e nunca havia conseguido chamar muita atenção para o seu trabalho.
Fosse a década de 90, ou mesmo os anos 2000, talvez o perfil começasse com a descrição dos meus seios e quadris. Mas estávamos em 2015, e o jornalista/escritor/agitador cultural de sarau de desaplaudidos sabia que não poderia cometer esse “autoaniquilamento” de carreira. Então começou a matéria dizendo que eu tinha passado a entrevista inteira disfarçando um “atraente sotaque de periferia” e “querendo forçar alguma elegância”. O machismo sempre dá seus jeitos de perpetuar a espécie.
Meu amigo (e aqui me refiro ao Garoto, e não ao jornalista/escritor/performer de alcoólatra que me entrevistou), se tem algo de que não faço questão nesta vida é falar, andar, comer e fitar o pôr do sol imitando a aristocracia decadente que sobrou na zona oeste depois de três gerações torrando a fortuna do bisavô escravagista. Vejam: eu adoro pousada, hotel, restaurante e loja de rico, porém não suporto nenhum rico dentro desses lugares. Meu sonho é encher um ônibus com meus amigos e parentes e invadir o Fasano Boa Vista. Não suporto o sotaque dos ricos, a malemolência daquela língua afrescalhada com cifrões nos perdigotos, a faca na mão direita para cortar um fake prime rib −sempre a favor das fibras−, a postura eretíssima da coluna, porque se curvar, mesmo com cinco hérnias, é coisa de pobre. Não suporto, não quero parecer, não quero imitar e, sobretudo, jamais quero votar como a maioria deles. Mas tenho muita inveja de herança. Muita. Da minha família eu só herdei dor crônica e doença autoimune.
Por exemplo, esse repórter/escritor/jornalista/DJ de meia-idade. Ele se considerava de elite. Só que, na época, alugava um imóvel que pertencia a um casal de amigos meus, e eles me contaram que o senhor não só não pagava o aluguel havia mais de um ano como sempre que os encontrava dizia “não pago mesmo, sou artista maldito”. Se tem uma coisa que eu não suporto, bicho, é artista maldito. Não é tão difícil largar uma cadeira de boteco por uma cadeira de escritório. Mas, se para você for impossível, daí é sua obrigação escrever um “Pornopopeia”. Se você for tão brilhante quanto o Reinaldo Moraes, eu até pago o seu aluguel. Em qualquer outro caso, apenas odeio os artistas malditos de meia-idade cagando regras e poesias ruins em mesinhas brancas de plástico.
Talvez essa raiva também seja algo que me “resta do Tatuapé”. Desde que me mudei para Higienópolis, percebo que a raiva saiu de moda. Em Perdizes ainda tinha muita bile escorrendo nos papinhos de elevador, mas aqui todo mundo parece ter saído de uma longa sessão de ioga. Finérrimos. Dei uma festa na qual se ouvia Anitta a quinze quadras da minha janela (odeio barulho, nunca faço, só que quando faço é pra valer) e ninguém (NINGUÉM!!!) do meu prédio reclamou ou brigou ou me olhou feio. Apenas fui obrigada a pagar uma multa de quase 3 mil reais no dia seguinte. Finérrimos. Elegantes. Nunca senti tanta saudade de uma boa senhora italiana me esculhambando com braços gordos e molengos às quatro da manhã. É muito melhor ser ofendida por alguém que passa nervoso, passa mal, passa do ponto e pede desculpa (pessoas reais) do que aturar sorrisos equilibrados e ter de pagar três paus. Rico não se desgasta. Eles têm advogados e funcionários para isso.
Outro dia, na porta da escola, reparei que eu era a única mãe vestida para envergonhar um filho. Estava usando o mesmo moletom sujo fazia dois dias e meias pink com chinelo amarelo. Não adianta eu explicar que me sinto uma gênia do Vale do Silício (que justamente porque poderia se vestir bem faz questão de não se vestir). Minha filha sempre me pede para eu não sair do carro quando estiver “vestida horrível”.
Meus últimos dez namorados deixaram muito claro —nem sempre em palavras, mas sim em silêncios— que não gostavam de palavrões, escatologias e piadas “de menino”. Eram todos da elite. Tenho esse defeito: eu namoro playboy disfarçado de progressista petista. Mas são todos playboys. Ainda que progressistas petistas. Acho que namoro rico só pra foder com eles —pronto, fiz uma piada de menino.
Tudo em mim é meio periferia, e não disfarço. Não digo que tenho orgulho, porque daí entra naquela coisa chata de atriz que ganha prêmio e manda beijo para a avó no sertão de Piraporinha Mirim: “sem ela eu não seria ninguém”. Aposto meu ânus depilado a laser caro que mais da metade dessas avós nem foram boas para suas netas premiadas em Gramado. Eu não me esforço para parecer outra coisa apenas por falta de capacidade, tempo e paciência. O dinheiro que eu perderia ao perder meu tempo para parecer que tenho dinheiro de família me faria perder o dinheiro que preciso ter para sustentar a minha família que não tem dinheiro. Apenas isso.
No mais, tenho uma imensa dificuldade em fazer qualquer programação em São Paulo que não seja nas proximidades do shopping Higienópolis. Quando o shopping Higienópolis inaugurou, andei catorze estações de metrô e depois peguei dois ônibus para ir lá conhecer. Não visito parentes ou amigos de infância porque é muito longe e porque preciso me medicar quando vejo piso laminado imitando madeira. Em nenhum momento eu disse que eu era legal.