Kinder Ovo da vida amorosa da mulher jovem é um Kinder Ogro

Escolher brinquedo para a filha é difícil, mas já aprendi a escolher namorado

Quem tem criança sabe que um ursinho fuleiro custa vintão na banca de jornal, mas a mesma pelúcia descartável, se estiver dentro de uma cápsula pink e embalada por um papel que diz “surpresa”, pode custar até R$ 289.

Acho que essa febre começou com o nosso Kinder Ovo, que na gringa é o Kinder Surprise. Pensando bem, começou muito antes, com as figurinhas. Paga-se pelo frisson de não saber pelo que se paga.

Lembro que, durante toda a minha infância, meu pai reclamava que figurinha não valia a pena porque era um troço caro demais para eu viver frustrada com as repetições. Ele não sabia que, 30 anos depois, teríamos o Rainbocorns Sweet Shake Surprise, o Little Live Pets Scruff Adotados Surpresa, o Lol Fucking the Life of Fathers Surprise e o Extremelly Fucking the Life of Mothers Candide Surprise. Em suma: uns bichos com glitter na cabeça e olhar cocainômano que seu filho quer que você compre pelo valor de sete cestas básicas só porque estão envoltos em mistério e plástico neon.

Sempre negocio gratificações quando minha filha toma uma vacina. Sei que depois vou ficar pelo menos 45 minutos parada no meio de uma Ri Happy tentando convencer que massinhas e jogos de tabuleiro são mais interessantes do que um ovo gigante de You Don’t Know hat Kind of Little Fucking Pony vai sair dessa enganação.

Sábado passado minha alma saiu do corpo e se sentou numa cadeira de Lego para me observar tentando vender para a Rita, com todas as forças do meu ser, um Divertirama da Estrela. Ao decifrar a razão que leva o cérebro alucinado de uma criança a se sentir atraído pela incógnita daqueles imensos ovos cor-de-rosa, toda a minha vida amorosa passou pela minha mente como se eu fosse morrer. E a gente sempre falece um pouco a cada tarde no shopping.

Quantas vezes meus olhos não percorreram toda sorte de rapazes expansivos e vulneráveis para estacarem curiosos naquele cara indecifrável e completamente sozinho na varanda de uma casa, encarando o horizonte com profundidade, numa cena sexy de me tirar o ar. Até a maturidade chegar e a gente descobrir que talvez o indivíduo enigmático da varanda só estivesse lá para peidar em paz, são décadas de fantasias em que você se imagina em Paris, de mãos dadas com o amante abstruso, que se comunica com você através de uma mistura de lacanês com dostoievskismo. Se o Xvideos levasse a sério o gosto feminino, as opções “macho esfinge”, “menino triste” e “senhor impenetrável” estariam pau a pau com as asiáticas, as MILFs e as amadoras do anal.

Acontece que o Kinder Ovo da vida amorosa de uma mulher jovem é na verdade um Kinder Ogro. Quantos desses rapazes eram de fato leitores de Hermann Hesse e quantos só não tinham nada a dizer, estavam bêbados demais para ser espontâneos, pagavam de obtusos apenas porque concentrados e a caminho de dar uma cagada no lavabo ou simplesmente não davam a mínima para a conexão humana?

De meu lado, também já sofri muito desabono por não fazer a gata misteriosa no jogo da sedução. Sou o tipo de gente que, em qualquer café rápido de trabalho, acaba contando detalhes bem específicos sobre os espíritos que eu via na infância ou sobre minhas protusões na escápula, e ainda listo para o semidesconhecido todos os meus parentes que têm condições psiquiátricas e revelo minhas dificuldades sexuais por não conseguir me manter cavalgando num bom ritmo em razão de um desgaste no quadrado lombar.

Comigo funciona assim: ou me conecto visceralmente no primeiro minuto ou jamais me conecto. Para cada cinco pessoas que me acham bizarra, uma me considera o maior e mais forte encontro que já teve na vida. E eu adoro essa vida.

Meu sonho é que as lojas de brinquedos um dia trabalhem com tamanho grau de sinceridade e transparência. Que, em vez de “magic surprise pelúcia do amor”, venha escrito algo como “ursinho minúsculo e mequetrefe de cinco reais feito mediante exploração de trabalho análogo à escravidão dentro de um invólucro de plástico que vai demorar 124 mil anos para deixar o planeta”, ou ainda “leve um Ludo que é melhor para a cognição do seu filho e não faz com que você se sinta um otário”. Mas esse não é o papel do capitalismo; é o papel das mães, esses seres exaustos e eternamente apontados como falhos por toda uma sociedade capitalista.

Comprei a bola surpresa do unicórnio Rainbocorns Fairycorn Surprise Shake Musical, que vem com a massinha surpresa Little Live Scruff. Mas aprendi a escolher namorado.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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