Sono Dogmático

Habent sua fata libelli. A frase impressionou, ninguém sabia o significado (também nem queria saber); só a tia autora do bolo, que o ornamentara em glacê com o latinório. Era para agradar o juiz aniversariante, poderosa autoridade nas cidadezinhas dos anos 1960. Mais tarde descobri a fonte: a citação de Terenciano, escritor romano do século 13, reproduzida no Dicionário Lello, zelosamente guardado no cartório; a tradução, embora latinista mirim aos 14 anos, ainda não alcançava: “os livros têm seu destino”. Quanto ao destino, simples: aquele que aprouver ao leitor – maior, menor, nenhum, como sempre.

Os livros (*) têm sido meu destino, mistério e paixão desde a alfabetização aos 7 anos, do ingresso obrigatório no ensino fundamental. Iracema, de José de Alencar, o primeiro livro, lido até o fim, no qual aprendi a fugir do autor para sempre. Desde então vivo aventuras com livrarias, editoras, bibliotecas, sebos, encadernadores; namorei o Kindle sem consumar. Leituras na tela só o essencial, sites de compras e de notícias. Interessa o livro físico, seja como estiver, onde estiver. Tenho um pacto à Doutor Fausto: só morro quando ler o último livro. Pura ilusão, pois compro dois por semana. (* Na falta de outro voltarei ao tema desde parágrafo.)

Por exemplo, este Nietzsche Biografia de uma tragédia, do alemão Rüdiger Safranski, S. Paulo, 2019, tradução de Lya Luft. Excelente, mas complexo como tudo que os alemães escrevem. Tão bom que, para nada perder, estou na segunda leitura; no Brasil, dos mesmos autor, editora e tradutora, há biografia de Martin Heidegger e Schopenhauer. Em sua curta vida, produtiva, apesar de abreviada pela doença, Nietzsche era leitor compulsivo. Mas dificilmente lia os livros até o fim: parava quando atingia o ponto em que deles recebia o alumbramento necessário para prosseguir nas lucubrações.

O filósofo não tinha a compulsão de nós leitores, meninos obrigados a esvaziar o prato; nunca descartamos o livro maçante do autor confuso e partirmos para leituras melhores, formativas e edificantes. Nietzsche inspirou-me a descartar, sem culpa, o autor brasileiro, catedrático, filósofo, historiador, jornalista, especialista em negritude. Rendi-me exausto e decepcionado exato a 115 das 220 páginas de seu confuso e soporífero livro, coalhado de referências exibicionistas. O precipitador, quando declara que Marx acordara do “sono dogmático”. A imagem é de Kant, 60 anos antes de Marx, no prefácio da Crítica da Razão Pura. Entreguei o livro a seu destino, o catador de papeis.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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