Vivíamos em uma montanha-russa, circulando por parques de diversões que não passavam por fiscalização
Lembra como éramos? Viajávamos para a praia em sete pessoas num carro pequeno. No banco da frente, o pai sem cinto de segurança. Ao seu lado, a mãe segurando no colo o irmão mais novo que, por sua vez, segurava um cachorro. Obviamente, todos sem cinto.
Em trajetos mais curtos, quando éramos muitos, um ou outro embarcava no porta-malas. Ou na moto sem capacete. Ou de pé na carroceria da camionete, rolando soltos lá atrás feito melancias.
Os pequenos fumavam cigarros de chocolate. Os adultos, de nicotina. Em restaurantes, escritórios, aviões. Cheguei a pegar um elevador em que havia um cinzeiro. Fiquei sabendo de um ginecologista que não largava o cigarro nem para examinar as pacientes. As pernas abertas, ele apoiando o cigarrinho num canto, a baforada quase entrando na vagina.
Refrigerante era água. Como meu pai tinha um restaurante, já dávamos largada com Fanta sabor laranja no café da manhã. Quando minha mãe resolvia ser saudável, servia Tang. Não era só na minha casa: festa de criança sem Coca-Cola não era festa. Conheci uma família que comia diariamente macarrão instantâneo com molho de salsichas. Estão vivos, mas não sei se passam bem —por falta de informação, tempo ou dinheiro, ainda há muitas famílias fazendo esse lento harakiri.
Com o bucho cheio de sódio, pulávamos na piscina sem saber nadar e sem usar boias. Nos dependurávamos da janela do décimo andar sem rede de proteção. Se alguma coisa desse errado, os pais batiam. Cintada, chinelada, tamancada.
Na escola, o bullying, que nem esse nome tinha, era livre. Colegas e professores aderiam a apelidos como: Arroto de Crush, Tiziu, Baleia. Crianças desciam na boquinha da garrafa em rede nacional. Programas de tevê voltados para toda a família faziam troça com gay. Piadas de salão envolviam anões, negros, judeus e portugueses.
Leões e macacos davam duro no circo. Aplaudíamos elefantes cabisbaixos levantando a patinha. Jorrando água pela tromba. Garotos matavam passarinhos com estilingue. Amarravam latas nos rabos dos gatos. Multidões enchiam touradas e farras do boi. A rinha de galo era um sucesso. E quem achava crueldade, era viadinho.
Vivíamos em uma montanha-russa, circulando por parques de diversões que não passavam por fiscalização. Andávamos em barcos que não tinham coletes salva-vidas. Quase ninguém usava protetor solar. As mães roubavam a Coca-Cola dos filhos para passar no corpo: prometia o maior bronze. Os homens se recusavam a usar camisinha: é como chupar bala com papel.
Conheci mulheres que alisavam os cabelos com ferro de passar. Nenhuma delas dizia para a outra: seu cabelo é lindo do jeito que é. Chamavam pessoas orelhudas de Dumbo. Tive uma amiga que, para ir a uma festa, colou as orelhas com Super Bonder.
Muitos homens nasceram, viveram e morreram sem tirar um prato da mesa. Quase todo mundo dirigia bêbado. Depressão era frescura.
Sobrevivemos. E evoluímos, como evoluímos. Mas desconfio que, daqui a trinta anos, olharemos para trás e pensaremos como éramos selvagens em 2023.