Num movimento coordenado e sob aval do presidente Lula, empreiteiras do cartel descoberto na operação Lava Jato resolveram deixar de pagar multas acertadas nos acordos de leniência com a União. Ato contínuo, passaram a pleitear a “revisão” das condições de pagamento das dívidas, que ultrapassam os 7 bilhões de reais. O objetivo estratégico das empresas, segundo fontes a par das articulações, é não pagar um centavo a mais ao governo.
Ao todo, segundo dados obtidos pelo Bastidor, seis construtoras têm parcelas em atraso nos acordos de leniência: OAS, Nova Participações (ex-Engevix), Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Novonor (ex-Odebrecht) e UTC. Quatro delas – Camargo, Engevix, OAS e Odebrecht – pediram ao governo Lula a revisão de seus respectivos acordos logo após interromperem ou informarem que interromperiam os pagamentos.
A Andrade já havia pedido a “repactuação” em 2020, após dar calote em 2019. A UTC está com seu acordo sob análise, também após anos de calote. É a única que não pediu revisão. Tanto Andrade quanto UTC ainda negociam com o governo. Na prática, portanto, nenhuma das empreiteiras sofreu qualquer sanção por descumprir as cláusulas dos acordos. O movimento coordenado de pedidos de revisão fortalece a posição de todas para negociar, embora as tratativas oficiais sejam individuais.
Os acordos de leniência – uma espécie de colaboração premiada de empresas – foram celebrados pelas empreiteiras junto a Controladoria-Geral da União, entre 2017 e 2019. É a CGU o órgão responsável pela fiscalização do cumprimento das cláusulas, seja quanto ao pagamento das multas, seja quanto aos programas de integridade prometidos. A Advocacia-Geral da União auxilia o trabalho da CGU. Os dois órgãos respondem à Presidência da República.
O movimento das construtoras começou em janeiro, sem alarde. A primeira a pedir a revisão foi a Camargo. Em abril, foi a vez da Engevix – a empresa comunicou a CGU que interromperia os pagamentos dez dias antes do vencimento da parcela. Em setembro, a OAS fez o mesmo. No mês seguinte, a Odebrecht. De acordo com dois articuladores das empreiteiras, o movimento de buscar a revisão aconteceu após aprovação do presidente Lula.
A Odebrecht firmou seu acordo de leniência com a CGU em 2018. Comprometeu-se a pagar 2,7 bilhões de reais em 22 parcelas anuais reajustadas pela Selic. Começou a pagar somente em 2020 -um pagamento de apenas 2,2 milhões de reais. Voltou a fazer pagamentos em outubro e novembro do ano passado. Logo parou novamente. Não gastou um centavo desde o começo do governo Lula. Ao todo, pagou 172 milhões de reais do total devido – ou 6% do total.
Apesar de gozar de todos os benefícios do acordo, como a possibilidade de ganhar contratos públicos e ter acesso a crédito, e apesar de ter pago até agora um valor pequeno num prazo alongado, a Odebrecht avisou a CGU do governo Lula que deixaria de honrar seus compromissos financeiros. Fez isso no dia 30 de outubro – no dia 31, venceria mais uma parcela. A empresa pediu revisão dos termos do acordo. A proposta é sigilosa. Ou seja, o público não pode saber o que justifica a revisão nem as novas condições de pagamento que a Odebrecht requer.
A Odebrecht e as demais empreiteiras têm direito legal a pedir a revisão. A CGU, em parceria com a AGU, têm a prerrogativa de avaliar os pedidos e chegar a uma decisão. Mas não há prazo. E os critérios para tomada de decisão são opacos. As negociações da CGU com o cartel ocorrem sem transparência – condições que agradam os lobistas das empreiteiras. Como as empresas querem usar créditos fiscais, precatórios e outros papeis para (prometer) amortizar as multas, as negociações em Brasília aqueceram o mercado secundário desse tipo de instrumento. A ausência de publicidade acerca dos tipos exatos de forma de pagamento – quais precatórios? Que tipo de crédito fiscal? – favorece quem detém papeis de qualidade até então duvidosa.
Questionadas, a CGU e a AGU confirmaram que cinco empresas, exceto a UTC, “apresentaram individualmente pedidos de repactuação da forma de pagamento, seja pela dilação de seu prazo ou pela compensação dos débitos mediante apresentação de precatórios ou o uso de créditos decorrentes de prejuízo fiscal” e que os órgãos “atualmente analisam cada um dos pedidos, a fim de avaliar a viabilidade técnica e legal”.
A CGU e a AGU asseguram que não está sob discussão a redução dos valores devidos, mas os prazos e as formas de pagamento. É uma meia verdade. Pelos acordos que fecharam espontaneamente, as empreiteiras se comprometeram a pagar as multas em dinheiro, no decorrer de décadas. Se o governo permitir que as construtoras deixem de pagar em dinheiro para amortizar os valores devidos com uso de precatórios e outros instrumentos, é evidente que as empresas gastarão menos – e o governo receberá menos.
Isso tudo, claro, na hipótese de a Justiça não anular as obrigações pecuniárias das empresas. No ambiente político e jurídico que prevalece em Brasília, ninguém acredita que as infratoras perderão benefícios assegurados nos acordos. Há advogados que esperam até mesmo que seus clientes terão direito a receber de volta os valores já pagos. Nesse cenário, a União passaria de credora a devedora das empreiteiras. É o resultado lógico da narrativa de que todas foram vítimas de abusos da Lava Jato.
Um dos advogados das empreiteiras disse, em caráter reservado, que “há boa vontade” dos órgãos em ouvir as empresas e que eles “têm sido muito sensíveis às dificuldades”. “Eles” são os funcionários da CGU.
As construtoras argumentam que os débitos se tornaram impagáveis porque o mercado ainda não reagiu à Lava Jato, à pandemia de covid-19 e à instabilidade do mercado global diante das guerras. “Não há obras para as empresas”, disse ao Bastidor um advogado delas. “As dificuldades de pagamento são notórias. O mercado não conseguiu reagir, não há obras para essas empresas.”
Os pagamentos bissextos – Outro advogado detalhou que o caminho traçado para mudar os termos do acordo, inclusive via judicial, passa primeiro pela verificação de eventuais nulidades e ilegalidades e que, na sequência, “é preciso avaliar se as fórmulas de desconto, previstas em lei, podem ser reexaminadas para se buscar valores que se aproximam da realidade”.
De modo geral, as empreiteiras pagaram pouco até agora – sobretudo as que pediram recentemente revisão dos acordos. A OAS, que devia 1,9 bilhão, quitou 4 milhões. A Andrade Gutierrez, com um débito de 1,4 bilhão, pagou 429 milhões. A Camargo Corrêa, que devia 1,3 bilhão, pagou 477 milhões. Já a UTC quitou 39 milhões dos 574 milhões de dívidas e a Engevix, dos 516 milhões, pagou 6 milhões.
As parcelas, que são atualizadas pela Selic, deveriam ser quitadas anualmente. Os prazos vão de 22 a 27 anos. Mas os dados da CGU mostram que não há um padrão nos pagamentos.
Nos casos da Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, OAS, Odebrecht, Engevix e UTC há pagamentos de diversas parcelas feitos durante um mesmo ano. Consulte aqui os dados.
O padrão não é o mesmo em outros acordos de leniência. No painel disponibilizado pela CGU, constam informações de outras 17 empresas, além das construtoras.
Como exemplo, a Technip, empresa de engenharia francesa, já pagou todo o acordo celebrado em 2019. Foi quitado um valor de mais de 849 milhões de reais em três parcelas anuais.
Nenhuma das seis construtoras condenadas na Lava Jato e que buscam uma renegociação das dívidas chegou a pagar mais de 40% das multas. A que mais avançou foi a Camargo Corrêa, com 34,17%, segundo dados da CGU. A Andrade Gutierrez quitou 28,8%, a Engevix pagou 1,16%, a OAS parou em 0,21%, a Odebrecht em 6,33% e a UTC em 6,85%.
Ao comparar com outras empresas que celebraram acordos de leniência, há uma diferença no ritmo de pagamentos.
A Braskem, que pertence à Petrobras e a Novonor (ex-Odebrecht), já pagou 75,84% de uma multa de mais de 2,8 bilhões de reais. O grupo holandês SBM Offshore já quitou 77,29% de um débito de mais de 1,3 bilhão de reais.
A CGU e a AGU, em resposta ao Bastidor, argumentam que “cada acordo de leniência celebrado possui condições específicas de pagamento, cujo cronograma é estabelecido em cada negociação específica levando-se em consideração a situação econômica do infrator”.
De acordos com os órgãos, “não há vedação para que a pessoa jurídica honre a parcela anual de forma fracionada ao longo dos meses, respeitadas em qualquer caso a atualização monetária e as sanções de mora previstas no acordo, para os valores pagos após a data de vencimento”.
Procurada, a Novonor, ex-Odebrecht, disse que “segue comprometida com o cumprimento das obrigações assumidas no acordo de leniência, mantendo um diálogo transparente com as autoridades competentes. Da mesma sorte, não comenta informações vinculadas fora dessa esfera.”
A Andrade Gutierrez respondeu que não comentaria. As demais não retornaram o contato.