Há duas semanas, falei-lhes de uma leitura que me fez bem, aliás, muito bem: “Ilhas Veredas e Buritis – a autobiografia de Eliane Lage e a história da Vera Cruz”, da Gryphus Editora). Hoje, falo-lhes de uma leitura que me fez muito mal, causou-me profunda tristeza, ainda que a recomende a quem se interessa pela vida das pessoas que fizeram a história artística deste país.
Refiro-me a “Tudo Passará – a Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção”, escrito pelo jornalista, roteirista, diretor de TV e crítico de cinema e música André Barcinski (Companhia das Letras, 2023).
Vítima de displasia, Nelson Ned não cresceu fisicamente, mas, impulsionado por uma força pessoal inquebrantável e um talento incomum, do alto dos seus iniciais 0,90cm e, depois, 1m08cm, tornou-se um dos maiores cantores do Brasil, aclamado mundialmente.
Poucas vezes se viu uma trajetória semelhante. Nascido em Ubá, MG, Nelson teve uma infância normal. Simpático, alegre, comunicativo e profundamente inteligente, o nanismo virou atração. E ele sempre adorou uma plateia. Aos três anos de idade, já cantava no rádio. Era também um exímio imitador. E logo passou a não admitir zombaria de sua condição física. Quando não reagia com raiva, argumentava com deboche:
– Muita gente se preocupa com o meu tamanho. Eu não. Ele me traz vantagens excepcionais: sou portátil, no campo sinto o cheiro da terra, das flores, das folhas. O ar em volta de mim é perfumado, não tem poluição: os arbustos, do meu tamanho, se encarregam de purifica-lo à sua altura.
Aos 15, Nelsinho mudou-se para o Rio e foi morar com os tios. Ainda não pensava numa carreira musical, mas as coisas se precipitaram e ele foi descoberto pela TV carioca. Programa de Hebe Camargo, Discoteca do Chacrinha, programa de Sílvio Santos. Todo mundo impressionado com a voz potente e afinada daquele baixinho. Isso valeu-lhe duas páginas na revista O Cruzeiro e levou-o à TV Tupi e à primeira gravação, pelo selo Polydor.
Então, Nelson Ned topou no caminho com o empresário Genival Melo, um veterano na indústria do disco, e mudou-se para São Paulo. Ali, descobriu a vida noturna vibrante da cidade. Para sobreviver, chegou a cantar em três ou quatro boates por noite, em shows de uma hora de duração. Até ser convidado para participar do Festival Buenos Aires de la Canción e revelar uma composição inédita de sua própria autoria: “Tudo Passará”. Aí, o mundo de Nelson virou de cabeça para baixo. Da Argentina ao México, Guatemala, Colômbia, Venezuela, Panamá, República Dominicana, Porto Rico, Nova York, Miami e Canadá foi um pulo. Mas não só. Também Portugal, Angola, Moçambique. Todo mundo apaixonou-se pelo baixinho Nelson Ned e por sua música. Ele, aliás, era muito mais famoso e querido fora do Brasil do que em seu próprio país. Aqui, muitos o achavam um cantor brega, como Waldick Soriano e Agnaldo Timóteo.
Cantava (bem) em inglês, espanhol e italiano. E o repertório, sempre de sua autoria, reunia, além de “Tudo passará”, “A cigana”, “Eu também sou sentimental”, “Se eu pudesse conversar com Deus”, “Se as flores pudessem falar”, “Cada um de nós sabe de si”, “Dois corações”, “Será, será”, “Domingo à tarde”, “Canção popular” e tantas outras, todas com versões em espanhol.
Em 1974, uma turnê norte-americana teria uma sequência impressionante de shows: três apresentações por noite no Casino Royal, na cidade do México, seguidas por 22 datas no Centro Español de Miami, EUA, e o clímax no mitológico teatro Carnegie Hall, em Nova York, onde o movimento bossa-nova nasceu nos EUA. Só que um show não seria suficiente e outro aconteceu no mesmo dia. Os ingressos para ambos acabaram um minutos.
Antes disso, Nelsinho já fizera 14 apresentações no Boulevard, teatro de 1.839 lugares, no Brooklyn, e mais seis no teatro Plaza, de 2151 lugares, no Queens. Em Santo Domingo, capital de República Dominicana, um show para 2 mil pessoas lotou a Concha Acústica, mas o grande espetáculo foi em Santiago, no estádio Cibao, que reuniu 18 mil pessoas.
Com as burras repletas de dólares e intimidade até com os chefões do tráfico de Cali e de Medellín, Nelson Ned passou a ser o artista mais rico e poderoso das Américas. Só que a fama, o dinheiro e o poder têm o seu preço. Da morfina tomada para aliviar as dores físicas do corpo, Nelson, que já era viciado em sexo, passou a abusar do álcool e chegou à cocaína.
Virou evangélico, gravou três discos em homenagem a Jesus, mas aí ele já não era mais o mesmo e as vendas foram mínimas.
Fora de casa às vezes até nove meses por ano, Nelsinho esquecia dos filhos (tinha três, um rapaz e duas meninas), dos compromissos e das obrigações financeiras. A vida desregrada, que já lhe deixara cego de um olho, afastara-o da família e dos amigos, causou-lhe um AVC, que lhe paralisou o lado esquerdo do corpo e prejudicou a fala.
O tratamento médico drenou as finanças de Nelson. E, de repente, sem shows e sem novos discos, a sua única fonte de renda passou a ser o cheque de royalties que ganhava por seus antigos sucessos. Não era suficiente para suas despesas, incluindo o tratamento de saúde dos filhos, portadores da mesma síndrome do pai. O jeito foi despedir o batalhão de empregados, deixar a mansão do Alto da Boa Vista, em São Paulo, e passar a morar, em rodízio, nas casas das irmãs. Acabou em clínicas de repouso em São Roque e em Cotia. Passou a perder a capacidade cognitiva e faleceu na manhã de 5 de janeiro de 2014. Tinha 66 anos.