O Buraco da Velha (1).

Primavera verão, quando a temperatura aumenta e os ossos pressentem uma tempestade no ar, a gente antiga de Curitiba levanta os olhos para o céu do Parque do Barigüi, na direção de Campo Largo, rumo de Ponta Grossa. Naquela nesga de hemisfério se localiza o que os antigos chamam de “buraco da velha”. Se as nuvens daquele canto escurecem, é tempestade da grossa. O “buraco da velha” inunda os bairros, vilas se enchem de lama e a Prefeitura declara calamidade pública.

Vêm de longe os augúrios do “buraco da velha”, uma história que pode, como não pode, ser verdade. Contada nos caminhos da serra de São Luís do Purunã, chegou a Curitiba no lombo dos burros carregados de erva-mate.

Maria Delacruz era o nome da velha, nascida em Campo Largo da Piedade. Era filha de Delário Delacruz, caboclo sem terra que, em 1819, ganhou do capitão João Antônio da Costa um pedaço de terra em Campo Largo da Piedade. Homem dos mais ricos de Curitiba, o capitão era proprietário de um mundo de terras na borda da serra. Para compensar os seus pecados, o devoto doou a Nossa Senhora da Piedade parte de suas propriedades, permitindo que nelas fosse viver quem bem entendesse. Sem ônus algum, qualquer família tomava posse com a condição de lavrar e cuidar da terra doada.

A família de Delário foi uma delas. A esposa, Júlia Delacruz, morreu muito cedo, mordida de cachorro louco. Com a mãe enterrada nos fundos da capela de Nossa Senhora da Piedade, cuja imagem da santa o capitão João Antônio da Costa mandara vir da Bahia, a pequena Maria Delacruz tornou-se a dona da casa. Delário vivia no lombo do burro, vendendo em Curitiba o que a terra produzia. E foi numa dessas viagens que a filha única ficou órfão. Por incrível que pareça, Delário também foi vítima da mordida de um cachorro louco na ponte do Rio Barigüi.

Dona do próprio nariz, dona da própria terra, Sinhá Marica – depois Nhá Mariquinha – vivia num casebre que dormitava na sombra de velhos pessegueiros, com os laranjais debruçados na cumeeira. Só o farfalhar das araucárias quebrava a solidão.

Pela janela da frente, Sinhá Marica vislumbrava o distante azul da serra de São Luís, com seus tentáculos de granito. Pela porta dos fundos, além da horta e do galinheiro, um morrote um tanto elevado – a cujo sopé corria grosso regato de águas puras e borbulhantes, uma das fontes de água mineral que em Campo Largo abundam. Varando um caminho de aleluias, ou árvores quaresmeiras, Sinhá Marica chegava ao refúgio secreto: uma gruta pequena e sem mistérios, iluminada em cheio pela luz do dia, revestida de calcários e com alguns estalactites bem perfeitos. Foi na gruta das aleluias que nasceu a lenda do “buraco da velha”, de onde Curitiba divisa raios e tempestades.

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Sinhá Marica era uma menina de dedo verde: em agosto fazia a sementeira de cravos e no resto do ano seguia o calendário das flores e verduras da estação para vender em Curitiba. Fazia o caminho de Delário, o mesmo trajeto descrito em 1886 pelo Visconde de Taunay: “Logo à saída de Curitiba, o engenho de beneficiar mate do sr. Ildefonso Pereira Correia, mais tarde Barão do Cerro Azul, no lugar chamado Itaqui. Quase defronte, um pouco antes, um estabelecimento de preparar carnes frias, um inglês chamado Winters; por sinal que fazia línguas salgadas excelentes, com que várias vezes nos presenteou. A seis quilômetros atravessava-se o Barigüi, o primeiro afluente mais volumoso do Iguaçu, que lhe leva o contingente de todos os riachos e ribeirões de Curitiba”.

Atravessando o Barigüi, Sinhá Marica passava pela mansão do coronel Quincão, Joaquim do Feliciano Lucena, senhor de serra abaixo e serra acima. Português que fez fortuna em Paranaguá, o donatário do horizonte de Guarapuava vivia cercado de capangas na mais luxuosa mansão da capital.

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Leia nesta sexta-feira: vendendo flores e frutas de casa em casa, foi no Bigorrilho que Mariquinha bateu na porta errada do destino.

Dante Mendonça [01/11/2006] O Estado do Paraná

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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