

A voz gravíssima, cola o corpo ao meu, cutucando-me com um dos lados do cotovelo, justo o do braço que segurava o guarda-chuva, um sestro seu para chamar a atenção do interlocutor: “Bueninho, acabo de ouvir na Rádio Nacional. Sabe quantas almas somos?”. Jamais esquecerei o riso que conteve, a cara franzida para não transbordar a felicidade: “Sabe quanto?”. Novas cotoveladas: “Somos 702 mil e 35 almas!!! 702 mil e 35, meu guri!!!”.
Toda vez que novas estatísticas demográficas circulam, com relação à nossa Curita velha de guerra, me acorda dentro este pequeno grande episódio, pleno de significados. Ernane Gomes Correia sonhava o dia em que fôssemos metrópole, e ele pudesse se diluir por aí, ele e suas singularidades. E que a cidade não fosse o reduto acanhado de onde, à frente dos cafés, nomeavam-se chifrudos e homossexuais, desquitadas e damas da vida airosa.
Acho que nasceu ali a idéia de ser invisível em Curitiba, posteriormente adotada pelo escritor Jamil Snege. Aliás, dono de um riquíssimo folclore em torno de E (ponto!), G (ponto!), C (ponto!). Snege entendia, mais do que ninguém, o que dentro daquela silhueta, a de E.G.C., aspirava despregar-se, numa pirueta que bem podia se dissolver num cintilante anjo de gordas asas de purpurina.
Feroz, entanto, a Curitiba cartorial nos vigiava, noite e dia, dia e noite, madrasta e bruxa, inquisidora implacável. Ainda ontem, senhores, não íamos além do Bacacheri. Daqui a pouco, em 2013, garantem os técnicos,
seremos 2 milhões de habitantes.Só no circuito urbano.
Ernane não gozou a anonimidade das ruas nem a juventude em flor pelos calçadões da XV. Não viu florescerem, como cogumelos de ficção-científica, os shoppings centers. Não pôde comparar Curitiba ao Rio de Janeiro que tanto amava e aonde se perdia, vez em quando, por certo a capa de gabardine a voar com ele por Copacabanas e Leblons, Glórias e Flamengos…
Mas também não viu a procissão dos mortos das segundas-feiras, estampada no próprio jornal, a Tribuna do Paraná, onde tinha uma coluna famosa. Os mortos de agora, do tiroteio e do crack, nos baldios da Fazendinha e do Sítio Cercado.
Melhor assim. E.G.C. hoje por certo canta e dança no horizonte. Do jeito que ele queria.
Wilson Bueno (7/9/2008) O Estado do Paraná.