Impossível não citar um final de semana como esse em São Paulo: Lou Reed tocando Metal Machine Music no Sesc Pinheiros, os bons shows do Pavement e do Yeasayer no Planeta Terra, e Sir Paul McCartney. Sobre este último, um dia, gostaria de falar sobre meus amanheceres assistindo as imagens coloridas dos 4 garotos de Liverpool descobrindo o sol da Flórida, nas imagens da Antologia, ao som de I`ll Follow The Sun. Ou sobre minha obsessão por For No One, ou sobre como ouvíamos Flaming Pie sem parar, ou sobre delicadezas como Junk.
Mas existem pequenas coisas inexplicáveis. Eu adoro passar alguns dias em Brasília, por exemplo. Ou gosto de cidades admitidamente feias como Glasgow. Não passei um dia sequer seco naquela cidade. Sempre com DMs húmidas, escalando ruas escorregadias polvilhadas com uma espécie de breu. O café da manhã era indigesto. Uma mistura de bacon frito, feijão Heinz doce, black pudding (sangue cozido), ovos e rins. É verdade, servido numa bela casa projetada por Charles Rennie Mackintosh, por exemplo. À noite, sob a chuva contínua, restaurantes indianos e incontáveis pubs. Eu poderia argumentar em favor do meu gosto com a média impressionante de 150 eventos musicais por semana, do punk rock à musica celta, em lugares como o Stereo, o Mono, o Nice `n` Sleazy. Claro, foi lá que assisti Bob Dylan pela primeira vez na minha vida. Sim, ele tocou It`s Alrigt Ma, I`m Only Bleeding e Every Grain Of Sand. Foi viajando para lá que vi, pela janela embaçada, o Mar do Norte cinza e solitário. A Forbidden Planet e a tradicional Fopp também são as minhas preferidas, além de muito baratas, você será atendido por pessoas bem informadas e bem humoradas, se tudo der certo. Poderia lembrar também da Escola de Arte da cidade ou do pequeno cemitério (é sério) atrás de uma igreja onde você poderá meditar por alguns minutos, embaixo de um guarda-chuva é claro, sobre “onde estarão os amores, ódios e paixões daquelas pessoas”, lendo Keats, Yeats ou Wilde.
Sim, existem pequenas coisas inexplicáveis. Mas se eu me lembro bem de onde veio esse meu interesse pela cidade, ele começou bem longe dali e há muito tempo. Em Curitiba, aguardando o início de um show, com a atmosfera e o perfume típicos desses eventos ao ar livre e frio, do meu lado dançavam, o som da música mecânica, um casal de garotos (nem tão jovens) com uns 28 anos talvez, ele bem mais alto do que ela, a música (I`m Gonna) Cry Myself Blind do Primal Scream. Dançavam como se aquele fosse o melhor lugar no mundo para se viver. Como se a vida fosse essecialmente boa (e é) mas isso e nada mais tivesse importiancia. É claro, vi tantas cenas como essa na minha vida, mas essa imagem me visita quando estou triste e vem com aquela música dos subúrbios industriais de Glasgow.
Essa é do Give Out But Don`t Give Up, disco abandonado à heroína. Nem é da obra-prima anterior Screamadelica, um dos discos mais belos e importantes da história da música popular. Essa obra maior pertence à cena do Haçienda em Manchester para onde Alan McGee (da histórica Creation Records), colega de turma de Bobby Gillespie, levou os meninos do Primal Scream. Gillespie, o homem mais charmoso e chapado da música pop, já não era mais o baterista do The Jesus and Mary Chain quando assisti aquela sinfonia de microfonias e distorções, no Palácio de Cristal em Curitiba, no meio da década de 80. O primeiro single que escutei de Screamadelica foi Loaded com aquele sampler primitivo de Peter Fonda em The Wild Angels (“Just what is it that you want to do? We wanna be free, we wanna be free to do what we wanna do, and we wanna get loaded”) e a voz de Gillespie repetindo Terraplane Blues de Robert Johnson. Inesquecível. A escolha incomum de um segundo single como Higher Than The Sun e, é claro, Movin` On Up, com seu piano e canto declaradamente apaixonado por Stones, conquistaram de vez um lugar na história para Screamadelica. A crítica especializada definiu o disco como “do seu tempo e eterno”.
Criaram outros discos, mais sombrios, hipnóticos, marxistas, speedfreaks. Discos importantes como o de “nervous breakdown” Vanishing Point (uma espécie de trilha sonora alternativa do filme clássico de 1971), e XTRMNTR, que Bobby Gillespie traduziu como “o que é ser jovem nestes dias”. Depois, uma fase ligada aos tablóides baratos que perseguiam a relação de Gillespie e Kate Moss que gravaram juntos “Some Velvet Morning”, clássico do incrível Lee Hazlewood e Nancy Sinatra.
Vi os dois shows do Primal Scream no Brasil. O primeiro com a participação do genial Kevin Shields. O segundo, no ano passado, foi desinteressado e distante (drogado) demais. Tentarei assistir Screamadelica ao vivo. Na nova tour eles tocam integralmente o disco. Caso não consiga, minha melhor experiência, ao vivo com o Primal Scream, continuará sendo a visão daquele casal dançando ao som de (I`m Gonna) Cry Myself Blind.
Felipe Hirsch (O Globo)