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Era um pândego. Poucas pessoas tiveram o talento daquele turco sem-vergonha. Sem-vergonha? Acho pouco, tratarei de piorar: cretino, safado. Um dos mais céticos, o mais engraçado, o mestre para imitar, Jamil Snege foi uma perda desgraçada.

Jamais fomos apresentados. No início dos anos 70, em frente ao café instalado no térreo do Palácio Avenida, depois que ali já havia falecido um dos melhores bares da boemia curitibana, reunia-se um grupo de, que vá, intelectuais. Tinha de tudo, falando mal de todos os governos então vigentes. Melhor ainda, fazendo grandes comédias daqueles governos. Jamil já era autor reconhecido, Tempo Sujo tinha sido bem comentado. Já havia também a barba bem cuidada, aquelas unhas agressivas. E o humor implacável. Rindo, ficamos amigos.

Lembro-me de uma noite, já em frente ao café na quina da Galeria Tijucas com a Boca Maldita, em que ele resolveu imitar Liberalino Estevão, poeta simplório que vivia de suas Populiras, quadrinhas diárias publicadas em jornal.

Rolamos de rir com o show, tanto quanto na madrugada em que encarnou o livreiro, comunista e filósofo de plantão Aristides Vinholes. O encarnado era uma espécie de, ao mesmo tempo, ídolo e vítima de todos nós, com sua voz baritonal, suas manias, as citações recorrentes.

Jamil tirava aquelas imitações de seu armazém mental de secos e molhados. Estocava tudo para oferecer depois, com uma capacidade para caricaturar como poucas vezes vi em humoristas profissionais.

Aos meados dos anos 70 incomodou-se com a publicidade. Não encontrava satisfação no que fazia, resolveu jogar tudo para o alto. Abriu a loja Cordel, para viver o sonho de todos nós. Uma loja em que vendia gaiolas sem passarinhos, tapetes persas nos quais voaríamos ao lado de personagens da literatura. A Cordel vendia sonhos, os quais já tinham acabado, conforme John Lennon. Melhor teria feito ele se vendesse os cuques que o cartunista Solda, seu ex-redator na Lema, alegava ainda manter em estoque.

Não podia dar certo. Deu no que imaginamos. Ele era turco, mas ainda mais italiano, herança da mãe. Administrava com o coração, como os negócios não permitem que se administre. Falido, aceitou o convite da Múltipla para tornar à publicidade. Grande e acertada decisão.

Lá, reencontrou a alegria. Voltou a editar – por essa época saiu Ficção Onívora, com nove textos maravilhosos – e criou grandes temas publicitários.

Trabalhávamos na mesma sala, ele, Bira Menezes, César Marchesini, Oscar Visser e eu. Oscar cheirava azedo, ele o chamava de arenque. E, implacável, ajoelhava imitando uma foca a pedir seu peixinho. Agora já era de matar de rir, não só rolar.

Foi quando me apelidou de Nana. Até o fim, volta e meia, vinha com o apelido infame. Uma amiga minha, ex-namorada que trabalhou com ele, sempre achou que aquela era mesmo a maneira pela qual meus amigos me chamavam. Mandei ligar para o Turco para desmentir. O safado confirmou.

Enveredou pela comunicação política e se deu bem. Inventou grandes personagens, mas não mereceu retumbantes vitórias majoritárias, com a exceção daquela que levou José Richa ao Iguaçu. Ele que merecia ter levado um candidato à presidência da República, deu-se por satisfeito ao criar, para o mesmo governo estadual, o poema O Meu Paraná Eu Traço, a maior peça já escrita de louvor ao Paraná.

Poucas vezes conheci alguém tão generoso com o texto alheio. Quando Paulo Leminski lançou o Catatau, foi dele, no Diário do Paraná, página inteira, a primeira resenha. Toda favorável. O Polaco não imaginava isso. Turco e Polaco eram rivais, não só em literatura.

Sua penúltima crônica tratava dos livros de suas meninas, três jovens já passadas dos 70 a quem ele vinha dando guarida literária. Escreveu que as obras poderiam se situar na ampla sombrinha da crônica. Mas, definiu, tal conceituação não seria possível, porque crônica era o que escrevia fulano etc. e tal. O fulano etc. era eu, o livro era o tal Onde me Doem os Ossos, ilustrado pelo gênio que nas horas vagas se assina Solda, atendendo durante o expediente por dezenas de inomináveis cognomes.

Durante o tempo em que sofreu aquele maldito câncer, liguei diversas vezes para o Turco. Não quis visitá-lo, porque ele mesmo não incentivava visitas. Conversamos, rimos um pouco, não passamos do trivial.

Então veio o dia fatídico. Eu estive lá, entre os que foram sofrer a sua saudade. Achei que iria suportar bem os trâmites dolorosos. Quase consegui. Antes de baixarem o caixão, José Maria Pizarro sacou de sua voz de Repórter Esso para ler o último verso do poema Senhor, obra-prima do velho sátiro ali pranteado:

Já inspecionei a proa,
Amarrei a carga,
Desatei a vela.
O vento sopra forte e
Enfuna meu coração
De alegria.
Agora é contigo, Senhor.
Toma o leme e risca
O rumo do meu barco –
Não penses que irei por
Este mar sozinho.

Já choraste a morte de um amigo, Senhor? Lamento dizer, não irás chorar nenhuma como chorei a morte do Turco. Culpa dele. Jamais um homem será capaz de escrever versos capazes de emocionar tanto o próprio enterro.

Artes de Jamil Antônio Snege. Engr
açado, implacável, chorado para sempre.

Ernani Buchmann

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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