O homem urso

Assisti, na semana, em DVD, ao O homem urso, o celebrado documentário que leva a assinatura de ninguém menos do que Werner Herzog. O mesmo cineasta que nos deu, no terreno estrito da ficção cinematográfica, ao menos uma obra-prima – o inquietante O enigma de Kaspar Hauser (1975).

Embora bastante badalado, não gosto de Fitzcarraldo (1982), um filme pretensioso e sensaborão (não é mesmo, Almir Feijó?), rodado na Amazônia, com Klaus Kinski e José Lewgoy, entre outros. Mas isto, claro, não tira de Werner Herzog a condição de um agudíssimo artista de nosso tempo – a investigar, sem trégua, tudo o que no humano é aparente “mistério”, ocultação e recalque.

Decifrador de enigmas, Herzog não poderia ser diferente com este O homem urso de extraordinária fatura. Ao tratar da vida de Thimothy Treadwell, o quase psicótico ambientalista que viveu, de 1990 a 2003, entre os ferocíssimos ursos de um parque nacional no Alasca, mais que traçar o perfil de uma personalidade, digamos, exótica, Herzog põe em pauta a sempre surpreendente condição humana.

Não precisa argumentar até onde ia o devotamento de Treadwell em sua obsessão de proteger os ursos. Nos treze anos que passou com eles, observados os poucos intervalos em que retornava à civilização, foi capaz de maluquices inomináveis com os animais. Até ser devorado por um deles, dos mais “familiares” e “amigos”, junto com a namorada, que casualmente o acompanhava na fatídica expedição.

Punha-se em assustadora proximidade dos bichos, chegando ao cúmulo de acariciar-lhes o focinho, filmando tudo invariavelmente com duas câmeras – uma móvel e outra fixa. O trabalho de Herzog situa-se, assim, como um filme dentro de um filme, pois quase todo o material do documentário é fruto das obcecadas câmeras de Treadwell.

Ansioso, de fala desatada e às vezes um pouco incongruente, o maior personagem deste documentário sobre ursos é o próprio “urso” Treadwell. Um “urso” magro e desvelado, a garantir, os olhos fixos no espectador, que os animais o estavam entendendo, que os animais o compreendiam e “sabiam” que ele estava ali para defendê-los e, por isso não atacavam.

O final colapso, quando Treadwell e Amy são devorados, cujo áudio, e apenas ele, é transmitido, revela-se, mesmo assim, arrepiante. E nos deixa uma lição, bem ao gosto de Werner Herzog: um destino só se completa se há nele coragem, determinação e sobretudo um artigo muito escasso na tribo, em qualquer tempo: a exaltação e o amor ao risco, sem o quê, no mundo em que vivemos, não dá sequer para levantar da cama, pela manhã. Quanto mais enfrentar ursos no Alasca.

Fascinante tornar alguns rolos de filmes que, de outro modo, restariam no arquivo-morto de algum laboratório científico, em matéria de elevada reflexão existencial. Não foi outra coisa que fez o celebrado cineasta alemão com a generosidade e o talento que são a sua maior marca.

Wilson Bueno [22/04/2007]O Estado do Paraná

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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