A cerejeira

Busco no velho caerninho de anotar coisas, o dia em que ela aqui chegou e sob a supervisão do Jean Brasil, da prefeitura, foi plantada, à frente da casa do croniqueiro. Para substituir a vetusta acácia que, por muitos anos, fulgor amarelo-ouro, ensandeceu os outonos da Edmundo Mercer com Macapá, no Boa Vista. Lá, a data – 25 de abril de 2006.

Magriça, uma vareta de não mais que metro e meio, sem folha nem charme, ante a minha visível decepção, posto que esperara, por mais de semana, uma legítima cerejeira do Japão, a famosa sakura, Jean Brasil me consolou: “Está hibernando. Na primavera já começa enfolhar”. Tivesse paciência, em menos de dois anos seria uma árvore.

Para quem vivera, noite e dia, à sombra de escandalosa acácia, cujas floradas quase invadiam o segundo andar do Palacete do Tico-Tico, o micro-sobrado em que moro, aquilo ali não era bem uma árvore. Presa ao bambu municipal, esquálido caniço, nunca chegaria a nada.

E assim sucederam-se os meses. O vizinho da frente que plantara no jardim uma simplória eugênia, me interpelava com arrogância: “Isso aí é árvore?” E apontava a eugênia: “Vê só! Já dá três desta sua esquisita sakura…” A vontade, confesso, era chamar o Jean Brasil para trocar de árvore. Será que morrera na casca a cerejeira?

O Google, várias vezes consultado, humilhava: sakuras de Kyoto, sakuras de Fukui, sakuras de Osaka. Imensas, esplendorosas, árvore símbolo do Japão, caminho de sakuras em Okinawa, o chão, um tapete de flores; sakuras pesadas de neve, brotação do paraíso; sakuras sob luas redondas feito um haikai de Issa. Da janela constatava: Jean Brasil fincara ali só um galho mirrado.

No seu primeiro verão, ganhou algumas folhinhas, mas passara a primavera inteira espetada à frente de casa, caule sem vida. Até minha mãe, saindo um dia, súbito, das brumas do Alzheimer, perguntou por ela: “E a arvorezinha? Pegou?” E antes que eu respondesse, alheou-se de novo, em suas viagens de então aos anéis de Saturno.

No verão deste ano não pude contar à D. Cida, que me ensinou a gostar de árvores, que a sakura tomara, enfim, vergonha – enfolhara-se toda! E numa brotação menina de folhas, de ramas e galhos, a cada vento, a cada chuva, parece falava.

Ao final do outono, perdeu as folhas e crivou-se de brotos. Agora, inverno, o que era broto explodiu numa profusão de botões que se tornaram, alvíssaras!, grandes cachos de flores róseas em que inteirinha esplende e exubera, na calçada, a jovem cerejeira.

No céu que lhe aconteceu, minha mãe, viva memória da vida, deve estar se rindo toda: “Olha lá, viu? A cerejeira!”

Wilson Bueno (6/7/2008)O Estado do Paraná.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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