A livraria ficava, se não me engano, no primeiro andar da esquina da Rua do Rosário com a Praça Tiradentes. Entrava-se por uma escada estreita, de madeira. Subi passo a passo, os degraus rangendo a lembrar um filme de terror. Ninguém. Prateleiras, livros, um balcão. Andei de um lado para outro, pigarreei, arrastei o pé no chão. Já estava desistindo, quando emergiu, por detrás do balcão, um sujeito que me perguntou:
– O que você quer?
Assim, sem rodeios, um golpe de direita no queixo. Era um homem careca, de cara monolítica e sobrancelhas tensas. Ele balançou o corpo – parecia não se conter dentro de si – uma das mãos na cintura e outra sobre o balcão. Repetiu a pergunta:
– O que você quer?
Naquela época eu era um tímido profissional, capaz de horas de mutismo e de silêncios abissais e intransponíveis. Mal consegui dizer:
– Procuro um livro…
Hesitei. Súbito, o nome do livro sumira de minha cabeça. O careca atacou:
– É claro que procura um livro. Mas qual é o livro?
– História Social da Arte, do Arnold Hauser – lembrei, de soco.
Afastando-se ligeiramente, ele ergueu o tronco que inclinara para falar comigo. Retirou a mão que estava sobre o balcão, mantendo a outra na cintura e continuou, no estilo boxeador:
– E por que precisa deste livro?
Eis uma pergunta que eu não me fizera. Ou seja: queria ler, apenas isso. Já encontrara várias referências a ele em artigos, em livros, em jornais.
– Quero ler, murmurei.
– É claro, para que iria querer um livro, não é mesmo?
Ficamos os dois, olhos nos olhos, preparando o bote. Boxe puro. Temi que eu pudesse passar da timidez mórbida à agressividade mais desastrada, o que me acontecia na época. Por sorte, ele relaxou, ergueu os ombros, fazendo com que seu pescoço sumisse no meio deles, e estaqueou os braços sobre o balcão:
– Olhe, meu rapaz. Eu tenho o livro. Está ali, na prateleira ao lado da janela. Mas… – esperei pelo pior – …seu professor, ou seja lá quem lhe indicou este livro, não explicou uma coisa, provavelmente porque também não sabe. E me disse que eu perderia tempo lendo aquele livro. Está na moda, comentou com alguma repugnância, todo mundo anda lendo, todo mundo indica, mesmo sem ter a menor noção do que se trata. Moda, compreende? Moda é moda. Acontece que é um livro teoricamente fraco, com uma visão tosca das relações entre sociedade e arte. O autor, esse Hauser, leu Marx e não entendeu nada. E arrematou:
– Bom, o livro está ali. Se quiser comprar… Não aconselho.
Não comprei. Sumi escada abaixo. Só fui ler o livro meses depois, comprado no sebo da Voluntários. Em todos os casos, era outra Curitiba. Em qual das livrarias de hoje eu poderia encontrar um espécime raro daqueles: um livreiro que lia os livros que vendia, que tinha uma opinião a respeito deles – qualquer que fosse – e que, por discordância teórica e ideológica, preferisse não vendê-los a um estudante incauto?
Anos depois, me tornei amigo do Vignoles, quando ele já deixara de ser livreiro. Seguimos no estilo boxeador, como sempre, com diretos e cruzados de lado a lado. Uma grande figura. Um livreiro que sabia falar sobre os livros que vendia. Era outra Curitiba. Talvez outro mundo.