A entrevista de Simone de Beauvoir e outras histórias do Sebastião – II

Depois do almoço, saímos do restaurante, fomos até a Praça Tiradentes e baixamos a Monsenhor Celso. Na XV, dobramos à esquerda e começamos a andar pelo calçadão. Curioso, não perguntei aonde o Sebastião estava indo. Quando chegamos na Confeitaria das Famílias, ele me convidou para entrar. Sentamos e eu pedi um canudo. O França pediu um canudo, uma bomba de chocolate, outra de creme, um madrilenho, um folhado de creme, outro de maçã, e mais uns dois doces. Para ajudar na ingestão, pediu 3 ou 4 Wimis, uma garrafinha de suco de laranja gaseificado, que era (não sei se ainda é) fabricada pelos Irmãos Cini. Perguntei se ele estava esperando alguém? Ele respondeu que não e começou a comilança. Ainda comentei que ele iria morrer de diabetes. Ele nem aí, continuou devorando. O bigode ficou todo branquinho de açúcar e na hora de pagar a conta constatei que o Sebastião gastava na sobremesa, dez, quinze vezes mais do que o preço do almoço.

De vez enquando, o Sebastião me convidava para o “roteiro gastronômico” e aproveitava para contar as suas aventuras, que eram muitas.

Começou a vida como repórter do Diário do Paraná, do Assis Chateaubriand. Foi lá que conheceu e ficou chapa do René. Como todos os outros jornais do Chatô, só pagavam vales, que eram quitados na tesouraria às sextas-feiras, menos quando algum dos diretores dos Diários Associados passava antes e limpava o caixa, o que quase sempre acontecia. Sebastião, para garantir algum troco, conseguiu um emprego de repórter na Rádio Colégio Estadual do Paraná, antigo nome da Rádio Educativa, que acumulava com o jornal.

Naquela época, o grande sucesso era o Jornal do Brasil. Depois da criação do caderno B, pelo Reynaldo Jardim, e das reformas efetuadas por Jânio de Freitas, o JB era o sonho de todo jornalista. Sebastião, que lia o dito todo dia na Biblioteca Pública, sonhava com o Jornal do Brasil e com cinema. Se o cinema era um sonho distante, o JB, no Rio de Janeiro, poderia ser alcançado.

Um dia, juntou as economias, botou os pertences numa mala de papelão e pegou um ônibus para o Rio. Alugou um quartinho numa pensão xexelenta perto do JB e se apresentou na portaria. Lá disseram que ele tinha que falar com o secretário de redação. Foi falar, nervoso, com o José Silveira – não confundir com o Joel do mesmo sobrenome. Joel era sergipano e já uma glória na imprensa brasileira. José era gaúcho e foi secretário de redação do JB por mais de vinte anos. Silveira foi com a cara do Sebastião e lhe deu uma pauta para ser cumprida até às cinco da tarde. França saiu e cumpriu a pauta antes do horário determinado. José Silveira leu, rasgou, colocou na lixeira e disse: “Volte amanhã”. Por dez, quinze longos dias, a história se repetiu. Já desesperado e com o dinheirinho acabando, recebeu de Silveira a incumbência de fazer uma reportagem sobre os Pés Sujos do Rio de Janeiro. Sebastião jogou de local, frequentava os mesmos desde que tinha chegado na cidade. Entregou o texto. José Silveira começou a ler. De repente, se empertigou na cadeira, puxou o escrito para mais perto dos olhos e, ao final da leitura, devolveu as laudas para o Sebastião e disse: “Senta ali e reescreve tirando os adjetivos e os advérbios; deixe só os sujeitos e substantivos”. Sebastião agradeceu e fez o que lhe foi mandado. Silveira leu de novo e disparou: “Sai amanhã na contracapa do primeiro caderno. Leve a carteira de trabalho no departamento de pessoal”.

Sebastião França foi subindo na hierarquia da redação. Começou na polícia, como todos iniciavam, e quando viu era copidesque do caderno B. O Paulo Francis, que na época, entre outros doze empregos, dirigia a revista Senhor, prestou atenção nos textos do Sebastião França. Um dia, chamou-o e lhe deu uma pauta. Na Senhor, desde os tempos do Nahum Sirotsky, só escrevia craque de seleção brasileira. Se Sebastião não era um Garrincha passava bem como um Bellini ou Zito. Começou a colaborar na Senhor e continuou no JB.

Belo dia, a embaixada da França, que ainda funcionava na Cidade Maravilhosa, mandou um press release informando que iria abrir concurso para uma única bolsa de estudos ao Brasil no Institut des Hautes Études Cinématographiques de Paris. Era a chance que Sebastião pedia a Deus há anos. Pensou em não dar a notícia, mas mudou de ideia ao refletir que o concorrente Globo publicaria. Fez o texto.

Como o francês que havia aprendido no Colégio Estadual do Paraná não era suficiente para fazer as provas, Sebastião foi na Aliança Francesa e conseguiu a informação de que a Madame Não Sei das Quantas dava aulas particulares. Esperou a Madame terminar o curso e combinou tudo com ela. Era uma marselhesa que veio passar férias no Rio, conheceu um médico, se apaixonou, casou e nunca mais foi morar na França. As aulas, tendo em vista a premência para o concurso, seriam de segunda a sábado, das sete as dez, no domicílio da professora. A Madame morava de frente pro mar, ao lado do Copacabana Palace, e o Sebastião, que já morava na Nossa Senhora de Copacabana, acordava, tomava café na padaria e andava umas quadras. O pagamento, em dinheiro, deveria ser efetuado aos sábados. Certa semana, o Sebastião constatou que não tinha o dinheiro. Como quem não quer nada, depois da aula, começou a falar, em francês, que a pintura do apartamento da Madame estava feia e desbotada. Não ficava bem uma professora da Aliança Francesa e um médico de renome não darem uma demão de tinta nas paredes. A Madame concordou, falou com o marido e decidiram pela pintura. Sebastião se ofereceu para o serviço, em troca do pagamento da semana. No sábado, depois da aula e entrando pelo domingo, realizou o serviço. Ficou tão bom que a Madame dispensou, também, o pagamento da semana seguinte.

Chegou o grande dia, Sebastião fez as provas, que versavam sobre a cultura em geral, literatura e cinema franceses. Achou que tinha ido bem, mas ficou na expectativa. Na semana seguinte, a embaixada ligou para o Sebastião para comunicar que ele tinha ganho a bolsa. Que fosse lá no dia seguinte com o passaporte na mão. O passaporte do França era virgem, tinha tirado não sabia bem por qual razão. Radiante, Sebastião foi na representação diplomática, pegou o visto, a passagem e ficou sabendo o valor da bolsa. Como nunca tinha saído do Brasil, ficou em dúvida sobre a quantidade de francos que estavam nos papéis. Foi falar com o colunista social do JB, que era seu amigo. De vez em quando, Sebastião ficava sabendo de umas fofocas de artistas famosos e dos milionários do Rio. O caderno B não publicava esse tipo de matéria, mas o Sebastião passava as conversas para o colunista, e ele, numas notinhas, sem identificar os personagens, dava na coluna.

Zózimo Barroso do Amaral era o colunista social do JB. Na época já rivalizava, e depois suplantaria, em prestígio, o Ibrahim Sued, na cobertura do jet set e picantes notas políticas. Ibrahim, que “escrevia” no jornal do dr. Roberto Marinho, tinha sérias dificuldades com o vernáculo, entre seus ghosts teve Elio Gaspari e Ricardo Boechat. Zózimo, que havia estudado nas melhores escolas do Rio de Janeiro, escrevia, ele mesmo, a coluna.

Zózimo, que ia quatro, cinco vezes a Paris por ano, olhou o valor da bolsa, fez uns cálculos de cabeça e sentenciou: “Para viver dá, mas com aperto. Vá morar em Montparnasse, que é o bairro onde vivem os intelectuais em Paris. Se hospede num hotelzinho barato e xexelento, o que importa é um colchão bom e chuveiro no quarto. Faça as refeições nuns bistrôs pés sujos. Peça o vinho e a água de la Maison. Mas, em todo caso, eu se fosse você, iria falar com o Alberto, no mínimo para garantir o emprego na volta”.

Alberto era o Dines, poderoso diretor de redação do JB. Na época, por sorte do Sebastião, o correspondente em Paris estava pedindo reforço. Meses antes, a França tinha explodido com o maio de 68 e o Brasil já estava pendurado no Clube de Paris, consórcio de países credores da Pátria Amada. Gastava todo o tempo cobrindo política e economia. Não tinha tempo para as outras pautas que recebia, notadamente do editor do caderno B.

Alberto admirava o Sebastião e ao ouvir a história o parabenizou pela bolsa com um abraço. Disse que era uma honra para o jornal ter um dos “seus” escolhido por instituição tão importante no mundo. Mas o Costa e Silva estava perseguindo o jornal e a grana andava curta. Semanas antes, a condessa Pereira Carneiro, dona do JB, havia sido apresentada ao ditador. Este se queixou das críticas do jornal. A condessa respondeu que eram críticas construtivas. Costa e Silva rebateu: “Condessa, eu não quero críticas construtivas, eu quero é elogios!”.  Dines propôs ao Sebastião dobrar o salário e pagar, se a matéria fosse ótima e digna de ser assinada, de cinquenta a cem dólares. Sebastião agradeceu de joelhos. O salário dobrado, convertido em francos, já era um reforço a mais no valor da bolsa. Cinquentinha ou cenzinho, em doletas, seriam uma benção dos céus.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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