Como a precursora Gilka Machado e Cecília Meireles, sua admiração confessa, nossa padroeira foi, a vida toda, professora de escola normal, quase o único ofício fora de casa que uma mulher podia exercer naquelas épocas, quando Getulio Vargas, nosso grande déspota esclarecido, dizia na Voz do Brasil, “Trabalhadores do Brasil”, mas não dizia, “Trabalhadoras...”
Para o magistério, viveu. E, como professora, aposentou-se. Como professora, eu disse. Como poeta, ela é mais viva e atual que boa parte dessa garotada que, hoje, anda por aí, apertando uma espinha aqui, enrolando um poema ali, achando que poesia é um texto qualquer nota e se julgando, em sua infinita ignorância, o maior gênio incompreendido do planeta. Nossa padroeira é o poeta mais moderno de Curitiba, de uma modernidade enorme, uma modernidade de quase oitenta anos. Nenhum de nós tem modernidade desse tamanho. Nossa padroeira nunca casou. E viveu a vida toda com a mãe e as irmãs, seu tesouro eslavo de afetividade e dedicação. Vida. Esse é o assunto de Helena Kolody. Não é à toa que essa nossa mestra de poesia é professora de biologia. Mas tudo isso que eu digo não passaria de uma efusão sentimentalóide, se a poesia de Helena não se sustentasse em nível de linguagem, de design, de essência.
Que dizer, porém, de um poeta que chega, de repente, e, apenas, te diz num poema de duas linhas, “para quem viaja ao encontro do sol, é sempre madrugada”? “Essências e medulas”, assim definira Pound a poesia. E esse era o nome que eu daria para um ensaio sobre a poesia da nossa padroeira. Quando, em 1941, Helena publica, em Curitiba, às suas próprias custas, a coletânea Paisagem interior, seu primeiro buquê de poemas, Bilac ainda é um Deus, o Modernismo de 22 ainda é apenas um escândalo e a poesia só é reconhecível nos trajes de gala do soneto. Sobretudo já estava morto e enterrado o rico movimento simbolista que, presente no Brasil todo, tinha tido em Curitiba o seu centro mais ativo: É Brito Broca quem diz, em 1910, Curitiba era cidade literalmente mais importante do Brasil. Basta dizer que oito das quinze revistas do Simbolismo brasileiro foram editadas aqui, entre 1895 e 1915.
Mas, quando Helena começa a produzir e publicar, esse momento já tinha passado, deixando atrás de si apenas um perfume e uma vibração. No escuro, no silêncio, na penumbra, Helena veio então construindo sua poesia e publicando aqui mesmo, Música submersa, A sombra no rio, Era Espacial, Trilha Sonora, Infinito Presente, sempre ela, até este Sempre palavra.
Algo na poesia e na vida, no produto e no processo, de Helena, me lembram o gaúcho Mario Quintana, a mesma pureza, a mesma entrega, a mesma singeleza, a mesma santidade. Mas Helena é mais enxuta, mais rápida, mais haikai que o mestre de Porto Alegre: Helena chega no gol com menos toques na bola. Periférica como Quintana, Helena passou esses anos todos meio intocada pelas novidades que fervilharam no eixo Rio-São Paulo, alquimista mergulhando sozinha até a essência do seu fazer lírico, até o momento em que, como diz ela, “o carbono acorda diamante”.
Folha de São Paulo, julho de 1985