Ninguém poderia supor, contudo, que, nas horas vagas, Lorena Montez se dedicasse, com assombrosa diligência, escondida de todos os colegas de circo, ao dificílimo ofício de atiradora de facas, coisa que exercitava, sabe lá Deus com que extrema dificuldade, consigo mesma. Certamente o braço longo a mirar para trás o próprio corpo, em golpes curtos e sem dúvida precisos.
Muitas foram as vezes em que contornou o corpo nu de prateados punhais que chegavam a sugerir, quando deixava o alvo, perfeitamente incólume, a exata silhueta de uma mulher, de fina cintura e respeitáveis ancas.
Isso até o dia emque talvez abduzida por si própria, provavelmente numa delirante mágica, Lorena Montez desapareceu de vez e por completo. Nunca mais foi vista, embora a tenham procurado por todo o México, e fora dele, detetives, fãs ardorosos, exaustos aficcionados pelo ilusionismo, além do amante que a ela dedicara os últimos trinta anos de sua vida.
Dela, da lendária Lorena Montez, o dia em que se desapareceu, só o uniforme de domador, absolutamente intacto na jaula dos leões atrás do circo e, dentro da mesma jaula, o alvo igualmente intocado onde, escondida de todos, exercitava o novo ofício. Na madeira de cortiça, que servia de alvo, só um contorno de facas a sugerir o exato desenho de uma mulher.
abril|2010 – Revista Ideias/ Travessa dos Editores