A linguagem silenciosa fazendo barulho

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Cai uma chuva ensimesmada e cheia de noves-fora. Abri meu baú de coisas futuras e dei de cara com um mega-evento — tipo o exemplar de A linguagem silenciosa, de Torthon Wild, um brilhante mecânico de automóveis de Arapiraca. Tá ligado? Se não está, pode ser problema de bateria. Vamos em frente ou em marca a ré. De todas as linguagens do ser humano, a silenciosa é, por definição, a menos barulhenta, mas não menos causadora de barulho. Pode ser um paradoxo de dois gumes, mas vamos analisar friamente a questão. Se você é um homem maduro, desses que andam por aí ou param na Boca Maldita, pode causar tremendo barulho se fizer um sinal silencioso de interesse para a mulher do próximo — principalmente se ele estiver próximo dela. Se já se convenceu dessa possibilidade, vamos agora examinar o carburador e a maldita bomba de gasolina que sempre entope.

Preste atenção, quando receber uma mulher em sua casa, aos detalhes que podem custar sua vida na estrada. Se ela chegar e sentar na beira do sofá, a situação não é promissora. Se conservar a bolsa no colo, pior ainda. Se aceitar uma xícara de café e nem colocá-la sobre a mesa de centro pra dar um descanso, preferindo tomar de um gole o conteúdo pelando… Bem, aí você já pode se preparar pra assistir o Programa do Jô sozinho e mal pago. Não quero desanimar você, que deve se achar um belo conquistador de carros e um ótimo entendedor de mulheres. Um simples curto circuito pode estragar a sonhada viagem ao Paraguai. Faça boa revisão e leve todas as peças sobressalentes que puder — de um simples fusível até os kits completos de suspensão e de caixa de câmbio. Nunca se sabe! Voltando à mulher — bem, ela já deve ter ido embora, pois não sentou confortavelmente, não largou a bolsa no sofá, não deixou o café esfriar, não cruzou as pernas, e, pior, nem pediu pra ir ao banheiro. Enfrente a situação com toda dignidade — o estepe deve ser calibrado toda vez que for calibrar os quatro pneus. Claro que ele está sempre num lugar de difícil acesso, mas se você tivesse se preparado para o momento, teria colocado música, diminuído a luz, disposto um prato com aperitivos na mesa de centro, um balde de gelo e a garrafa da bebida favorita dela. E deixado a porta do quarto entreaberta. Além de verificar o sistema de freios e o nível de óleo.

Considere: seu comportamento interpessoal precisa passar por uma revisão completa. Se você for a uma autorizada, vão pedir o olho da cara e podem trocar peças que nem estejam tão ruins — a preponderância do tórax, a cabeça erguida – que significa hipertrofia da atitude mental – e o dispositivo psicofisiológico. No seu mecânico de confiança, as coisas podem pender para resolver o lado da hostilidade reprimida, auto-agressão, resistência passiva, invasão de território e até da regressão a um estado infantil. Mas, se você conversar direitinho, ele dá um jeitinho e até parcela a dívida. Aí, pode sair acelerando à vontade e ir em busca de uma união amistosa e prazerosa, de uma expectativa de continuidade de relação extra-campo ou do território inóspito da tensão matrimonial. Acelera, Mané!

Rui Werneck de Capistrano é consultor de ritmos energicamente produtivos e autor de Nem bobo nem nada, romancélere de 150 capítulos.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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