E não é que em meio aos transtornos diários de uma sinistra ronda de ações fascistas, à presença de um psicopata na presidência que encena a loucura para nos imobilizar, eis que fui redescobrir a irresistível literatura de Campos de Carvalho? Primeiro foi a mensagem de um amigo querendo saber se eu tinha em casa uma vaca de nariz sutil para lhe emprestar. Em seguida fui eu mesmo à estante à procura da vaca e dei de cara com outras finas assombrações literárias produzidas pela imaginação surrealista do autor. Uma obra que permanece viva e atual.
Vaca de nariz sutil é o segundo romance, ou novela, de Campos de Carvalho, um pacato advogado mineiro de Uberaba que morou no Rio e em São Paulo. Durante algum tempo, escreveu às escondidas. Publicado pela primeira vez no início da década de 60 pela Civilização Brasileira. Estreou com A lua vem da Ásia, e depois vieram A chuva imóvel e O púcaro búlgaro.
Foram quatro livros recebidos com certa estranheza pela crítica e pelo público. Choveram adjetivos; gênio, maldito, louco, dotado de um humor extravagante. Com o tempo, estudado pela academia e reconhecido pelos críticos, tornou-se um clássico da literatura brasileira.
De novo às voltas com o púcaro e a vaca, atraído pela ousadia e originalidade de seu texto, reli algumas páginas. Em diversas situações ele põe o leitor em confronto com uma realidade surpreendente, hostil e enlouquecida. Como muitos dos acontecimentos que presenciamos hoje, num momento em que o país foi transformado num circo de horrores.
Logo na primeira frase de A Lua vem da Ásia, o personagem Astrogildo confessa em seu diário que aos 16 anos matou seu professor de lógica. Ele se encontra enclausurado num local que pode ser um hotel, campo de concentração ou hospício. Aparentemente, o tema central da narrativa é a loucura. Mas é o absurdo que está no cerne do projeto literário do escritor. Astrogildo narra na primeira pessoa seu cotidiano ao lado dos outros malucos e se recorda dos tempos em que traficava diamantes e deflorava filhas de políticos.
Desce cedo fui um entusiasta admirador de Campos de Carvalho, mas só pude apreciá-lo com calma nos tempos de cárcere, início da década de 70, no Regimento Sampaio, Vila Militar. Pedi à Suely que levasse o livro e, para minha surpresa, ele passou pelo crivo da censura do quartel, exercida por um major de cabeça aberta, leitor de Machado de Assis. Certamente o autor foi considerado um maluco, inofensivo politicamente.
Ali no Sampaio, sem ter o que fazer, li muita coisa, mas o surpreendente é que, confinado, tive um prazer especial com Kafka, uma releitura preciosa de O Processo, e com o autor de A Lua vem da Ásia. São contraparentes os dois, o mineiro é kafkiano. Seu livro não foi best seller entre meus companheiros de cela. Tínhamos um clube de leitura com reuniões semanais para críticas de livros. Ele não chegou a causar polêmica.
Tenho um de seus livros autografado, o penúltimo, A chuva imóvel, estranha e perturbadora história de uma chuva radioativa, um painel de angústias da idade atômica. Na livraria, estendi o livro, ele ergueu a cabeça e me olhou espantado. Perguntou meu nome. Abriu o volume na segunda folha e escreveu: “Álvaro, suma deste mundo!” Assinou, datou, 30/VIII/1963, e apertou minha mão.
Apesar de assustado, não segui o seu conselho. Só voltei a vê-lo uma vez mais, numa fila de ônibus na Avenida N. S. de Copacabana. Nada de sua escrita transgressora poderia ser reconhecida naquele rosto plácido. Vestido como um burocrata, paletó sem gravata, com uma pasta preta na mão, jamais poderia ter escrito um daqueles livros.
Carlos Heitor Cony e Guilherme Figueiredo escreveram as orelhas de dois de seus livros editados por Ênio Silveira na Civilização. Cony saudou-o “como um escritor que adquiriu autonomia e substância para ser ele mesmo, com seu inclemente testemunho”. E Figueiredo assinalou que seus livros pertencem ao mundo da lúcida loucura, a loucura dos humoristas.
Esgotados, os livros passaram anos fora de catálogo, até que em meados de 1990 a José Olympio fez um volume de sua obra completa. Posteriormente os direitos foram adquiridos pela Autêntica, que relançou todos na celebração de seu centenário de nascimento (1916-1998). Saíram as quatro novelas e uma coletânea de inéditos e dispersos.
Parte dos críticos considera a loucura o tema central das novelas, uma espécie de metáfora para a mediocridade e o absurdo da vida cotidiana. Sua marca é uma linguagem permeada pela ironia, o insólito e doses de humor. Na última, O púcaro búlgaro, o autor viaja numa tentativa cômica de uma expedição científica ao fabuloso reino da Bulgária e, consequentemente, dos púcaros.
O diretor Aderbal Freire Filho adaptou o livro para o teatro. Juva Batella, professor de literatura da PUC-Rio, publicou a pequena biografia Quem tem medo de Campos de Carvalho. Fica-se sabendo que o escritor certa vez escreveu: “Nasci clown e morrerei clown, embora a vida toda tenha sido um mero funcionário público”. Percam o medo e façam uma viagem com o autor, uma leitura encorajadora e divertida para estes dias de mistificação e terror.