De Israel para o Brasil — o alívio de ter os meus de volta

Foi a primeira vez que vi meus sogros juntando algumas roupas numa mochila para vir embora sem saber se um dia voltarão

“O único problema da viagem foi que eles não paravam de nos dar comida”, disse meu sogro, com o habitual bom humor, no alto de seus 88 anos, depois de uma viagem de 36 horas entre Tel Aviv e São Paulo, com escala no Recife. Ele e minha sogra, 83, estão entre os 494 brasileiros que o governo repatriou até o final da manhã desta sexta (13).

Chorei de alívio ao ver as imagens na TV dos dois descendo do avião da Força Aérea, com o auxílio dos militares que participaram da missão. Havia a bordo ajuda psicológica e todo aparato para atender os que estavam de passagem por Israel e alguns que, como eles, abandonaram parte de sua vida e de seus amigos.

Israel foi o refúgio da minha sogra quando, aos 16 anos, fugiu de injustiças sistemáticas, de perseguições e de detenções arbitradas pelo governo do Egito contra judeus-egípcios. O Brasil foi o destino de seu irmão, que mais tarde trouxe a família toda para viver por aqui.

Agora, Paula e Bernardo estão em casa. Depois de terem os voos comerciais remarcados e cancelados, contataram a embaixada em Israel e entraram na lista com mais 2.700 cidadãos, que devem continuar a retornar nas próximas semanas. Um esforço admirável do governo brasileiro, que prontamente se organizou para que todos voltem em segurança. Negociação mais difícil por aqueles que estão na Faixa de Gaza. Torço para que consigam escapar daquela região e dos horrores de uma guerra que sempre faz de inocentes as maiores vítimas, pessoas que querem apenas viver em paz. Dos dois lados.

Não foi a primeira vez, em mais de 10 anos de convívio, que acompanhei com aflição a rotina de misseis no céu de Israel e as idas e vindas dos meus sogros para bunkers no meio da noite. Mas foi a primeira vez que os vi juntando algumas roupas numa mochila para vir embora sem saber se um dia voltarão. Embarcaram num avião devido à gravidade inédita da situação, às imagens de horror, ao acordar num país em guerra.

Foi também a primeira vez que senti o antissemitismo tão explícito e generalizado. Qualquer declaração de solidariedade em relação aos brutais assassinatos no sábado da manhã de 7 de outubro foi cobrada imediatamente com uma conjunção adversativa. Bandeiras, muitas justas, sim, foram levantadas quando vítimas ainda eram fuziladas. Não é só uma questão de timing, é pura desumanidade de quem cobra humanidade dos outros. O ódio brutal que cega e não os deixa ver que muitos judeus de todas as nacionalidades querem para si e para palestinos o mesmo: viver com dignidade.

Judeus de todas as nacionalidades tiveram o direito à dor negado porque, afinal, os palestinos sofrem há décadas. Judeus de todas as nacionalidades são culpados pela política de Netanyahu. Judeus de todas as nacionalidades têm que chorar em silêncio pelos seus que foram mortos, estuprados, carbonizados, decepados porque fizeram por merecer. Não é mera retórica. As redes sociais estão cheias de declarações assim. Na foto de uma brasileira morta li o comentário de outra mulher que dizia “já vai tarde”. É a politização da barbárie. A naturalização do horror. Na cabeça de muita gente, para demonstrar empatia a uns é preciso demonizar outros. O ser humano será engolido por ele mesmo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Mariliz Pereira Jorge - Folha de São Paulo. Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.